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Crítica | Punk Rock Jesus

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

Sean Murphy decidiu que gostaria de ter alguns inimigos, e foi então que escreveu Punk Rock Jesus (2012), uma história capaz de causar sérias reações nervosas em parte de grupos cristãos. Com um estilo de arte detalhista (pela quantidade de coisas por quadro) mas de traços simples e em preto e branco, o trabalho do artista nesta minissérie — originalmente publicada pela Vertigo — possui um conteúdo crítico e perturbador, ambientado no ano de 2019 e focado em um reality show pra lá de diferente. Capturando elementos muito fortes de nossa sociedade, o autor inicia a sua série de seis edições com duas histórias distintas que se cruzam no ano em que o programa J2 entra em fase de produção e então vai ao ar. A proposta do show mistura ciência, religião e um sem-número de polêmicas que vão da bioética à blasfêmia. Com uma naturalidade desconcertante para tratar desse tema tabu já em sua origem, Murphy domina as regras do jogo narrativo e passa tranquilamente do prólogo aparentemente desprendido da história principal, e vai em busca do elo que unirá as duas partes: o Filho de Deus e o Filho do Rock.

A televisão americana exibirá este programa que usou de altíssimos investimos para clonar Jesus Cristo (sim, isso mesmo!) a partir do Sudário de Turim, ou Santo Sudário, aquela peça de linho que mostra a imagem de um homem que acredita-se ser Jesus. O espetáculo aborda parte da gravidez da “Virgem Maria”, a pobre e sensível Gwen, escolhida dentre os pobres num processo de seleção gigantesco, mas de cartas marcadas, até o nascimento do pequeno Chris, o bebê-clone-de-Cristo, em torno do qual um infanticídio e uma perversa maquinação parece surgir, em uma versão moderna e ainda infame de Herodes.

Há um certo sentimento de falta, tanto no roteiro quanto na arte de Punk Rock Jesus. O leitor até termina a primeira edição satisfeito, mas uma martelante sensação de que um tempero a mais ou um pequeno número de outros ingredientes visuais e narrativos não fariam mal à obra. No entanto, o potencial para a série é muito alto, e os temas tratados, que vão desde um ex-integrante do IRA até o clone de um dos personagens religiosos mais notáveis de todos os tempos não passam batidos pelo leitor. O ambiente relativamente claustrofóbico, as diversas chantagens do empresário em relação à cientista responsável pela clonagem e pelo parto da Virgem “Gwen” Maria, as nuances de um mundo em decadência… todos esses pontos enriquecem a obra e trazem um bom nível de reflexão. Nunca uma história sobre Jesus despertou tanto interesse de gregos e troianos quanto esta.

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Quem disse que rock era coisa do demônio?

A partir da segunda edição da série, Sean Murphy mostra os bastidores da criação do Jesus-clone. A Virgem “Gwen” Maria entra em depressão pós-parto e deseja desesperadamente sair da clausura do prédio da J2, onde acontece o reality show. Dentre as muitas coisas que poderia abordar, Murphy aposta inteligentemente em uma projeção para o futuro papel dos envolvidos no projeto. Esta segundo bloco é repleto de acontecimentos que dão uma outra cor à história, como a visita frustrada à casa dos pais de Gwen, os falsos milagres do bebê Jesus-clone, a estrondosa audiência do programa e a gravidez da Dra. Epstein.

Outro fato curioso é que vemos as sementes de uma estrutura familiar serem lançadas aqui. Em um eficiente flashback, acompanhamos momentos da infância de Thomas e possivelmente o momento em que as palavras “cristão”, “católico” e “luta” foram postas numa mesma frase para o garoto e definiram o que ele seria dali a alguns anos. Por trás da segurança prestada pelo brutamontes, percebemos que há o coração de um religioso convicto, mas de uma fé muito pessoal e fora dos dogmas típicos ou estruturais da maioria dos religiosos. Se está no projeto por acreditar que o clone de Jesus é uma “segunda vinda”, Thomas não age como se fosse apenas um religioso babão que se gaba de estar protegendo a segunda maior personalidade de todos os tempos.

O controle do dono da J2 sobre todos à sua volta é algo realmente chocante. Parece que ele tem as cartas certas e as usa nos momentos mais determinantes da trama. O roteiro de Murphy caminha tranquilamente por entre os desejos de cada personagem desse projeto científico e de entretenimento, cujas intenções se tornam cada vez mais duvidosas. Não realizados os desejos, o desespero aparece em cena, e é quando o primeiro pedido por um milagre aparece, justamente quando a segunda edição termina. A continuação da trama é muito melhor que sua abertura. A arte ganha proporções maiores e os desenhos quase cubistas dos rostos de algumas personagens demonstram muito mais de sua psicologia do que páginas e páginas de texto. Os detalhes sobre os cenários permanecem, constituindo a grande riqueza da arte da revista.

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Ritmo visual, boa distribuição de destalhes e diagramação pontualíssima.

O desfecho da saga de Jesus-clone é um misto de violência, genialidade e patetismo. Sean Murphy conseguiu criar uma minissérie polêmica, cheia de reviravoltas previstas, porém, pelo modo como são apresentadas, impressionantes; mas acima de tudo, conseguiu dialogar com os dois lados da moeda, mesmo que o seu foco fosse uma suposta criação de Cristo a partir do Santo Sudário, como abordado em Punk Rock #1. A partir da edição #3, o autor acompanha de forma mais presente o crescimento do menino Jesus-clone e seus milagres falhos quando criança. Esse período recebe uma atenção toda especial do autor, tanto na arte, que expõe um garotinho e sua melhor amiga (até então ele não sabia que se tratava de sua irmã) em um prédio gigantesco e milionário, sendo exibidos para milhares de cristãos e espectadores das mais diversas orientações religiosas ao redor do globo; quanto no texto, que marca o início de uma dura crítica do autor a Deus e seus feitos, tomando como base o polêmico Antigo Testamento.

O pequeno Jesus-clone cresce ouvindo histórias da Bíblia para crianças e, a partir de certa idade, tem aulas de religião holograficamente. É de impressionar qualquer um o momento em que Jesus-clone e Rebekah assistem a uma aula sobre o Dilúvio. A pergunta que não sai da mente do leitor nessa edição é: “Deus vai afogar todo o mundo de novo?“. Vindo de uma criança apavorada com a ira de Deus, isso é de cortar o coração, afinal de contas, o amor, o diálogo e a compreensão parecem não fazer parte do cardápio desses trágicos momentos de destruição observados nas Escrituras.

Mas o crescimento de Jesus-clone traz uma nova cara para a história. Em contrapartida, o autor caminha por temas atuais como o conflito entre facções religiosas (o fanatismo é a alma do negócio), as incursões geopolíticas da religião e suas marcas negativas na História. Em complemento, temos também o impasse com a ciência e a cegueira da doutrina, que faz com que um grande número de pessoas acreditem que regras de convívio criadas por seres humanos são creditadas a seres divinos e devem ser obedecidas à risca e sem questionamento. É uma pena que na reta final, especialmente ao fim da edição #5 e em toda a edição #6, Murphy concentre sua narrativa em outro ponto. Conforme a história caminha para o desfecho, temos cada vez mais a impressão de que ela se torna levemente pessoal e patética, no sentido dramático da palavra. Creio que essa foi a intenção do autor, a fim de mostrar o fim “ridículo” a que todas as lutas religiosas chegam — sejam contra ou a favor à causa, não servem de nada e só trazem a morte (Jesus-clone que o diga), mas pessoalmente, não gostei desse rumo.

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Você tem um minuto para ouvir a palavra do nosso Salvador?

Engraçado é o tom irônico do final da história. Uma estátua é erguida para Chris, o Jesus-clone morto na queda do helicóptero. É como se toda a luta do garoto contra a “adoração” não tivesse servido de muita coisa (me lembrou o questionamento do Surfista, em Parábola), e mesmo que a intenção da Dra. Epstein, Rebekah e Thomas fossem boas (assumindo que a estátua foi ideia deles), o seu significado não teria agrado em nada o saudoso Chris. A ironia com o mandamento sobre a relação entre Deus verus Imagem de Deus salta aos olhos e é outro grande golpe genial do autor nesta finalização.

Punk Rock Jesus é uma minissérie incrível, com um trabalho extremamente crítico, emotivo e bem desenhado de Sean Murphy. Mesmo que ele desacelere um pouco sua narrativa final, trazendo algo mais “familiar” para as páginas, a atitude não chega a ser negativa, e de nenhum modo irá desagradar por completo quem até então admirava a história. Com um desfecho cheio de desesperança, Punk Rock mostra um lado da mídia + religião que muita gente ainda não percebeu ou entendeu. Em tempos de políticos religiosos, programas televisivos com transmissão de rituais, causas de Cristo, Guerras Santas e afins, essa minissérie vem para adicionar lenha à fogueira dos que ainda pensam e questionam o que é ter fé e onde ela termina e começa a loucura pura e simples. É como aumentar o fogo de uma fervura. Vale cada momento.

Punk Rock Jesus (EUA, 2012 – 2013)
No Brasil:
Panini, 2013 e 2018
Roteiro: Sean Murphy
Arte: Sean Murphy
Arte-final: Sean Murphy
Capas: Sean Murphy
224 páginas

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