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Crítica | Persona (Quando Duas Mulheres Pecam)

por Luiz Santiago
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Quando Duas Mulheres Pecam. Este é o atroz título brasileiro de Persona (1966), a obra-prima de Ingmar Bergman. Talvez ancorado em uma sugestão de lesbianismo que uma das muitas interpretações do filme pode trazer, o título brasileiro dá as cartas para algo que é apenas um pequeno item na grande malha de situações que o longa expõe, apresentando o seguinte resumo, feito pelo próprio Bergman em 1969:

[…] uma história de uma pessoa que fala de outra pessoa que não diz nada. Em seguida, elas comparam suas mãos e finalmente elas se fundem uma na outra.

Os anos 1960 foram de intensas mudanças para Bergman, mas se pudermos realmente encontrar a primeira virada de jogo em sua própria carreira, o momento onde a direção iniciou a curva revolucionária, foi em uma comédia experimental à la Nouvelle Vague Tcheca e pouco admirada do diretor, Para Não Falar de Todas Essas Mulheres (1964). Em 1965, ele não filmou nada para o cinema. Para a TV, fez apenas uma minissérie chamada Don Juan e, em particular, escreveu o roteiro de um épico, um “filme duplo” como ele mesmo definiu, que deveria ter quatro horas de duração e já tinha Bibi Andersson contratada para um dos papéis principais. O nome desse roteiro era Os Antropófagos, e seu caráter duplo geraria dois filmes do diretor: uma parte traria ideias para a formulação de Persona (embora o filme tenha tido outra fonte de inspiração, chamada Liv Ullmann, por quem Bergman parece ter se apaixonado à primeira vista) e a segunda parte virou, com uma série de mudanças, A Hora do Lobo (1968). Ainda na já citada entrevista de 69, Bergman explorou o contexto que precedeu a criação deste:

Em janeiro, fiquei doente; no começo era um simples resfriado, tinha febre, depois, em março, meu estado se agravou e revelou-se que eu estava com broncopneumonia já há algum tempo. […] surgiram complicações por causa da penicilina, contraí uma infecção por vírus no ouvido, o que me dava vertigens. […] Os Antropófagos devia ser uma grande produção e, pelas circunstâncias, o projeto foi abandonado em março. […] Bibi e Liv tinham ficado amigas em O Verão é Breve (1962) e [tinha] uma foto delas na frente de uma parede. Elas estavam sentadas, se bronzeando e quando vi esta fotografia, pensei imediatamente “meu Deus, como são parecidas!”. Havia uma semelhança bastante estranha. […] A semelhança dessas duas mulheres me intrigava. Eu achava que seria divertido escrever alguma coisa sobre duas pessoas que perdem sua identidade respetiva nas suas relações, e que de certa forma também se parecem. De repente, tive uma ideia. Elas estavam sentadas e comparavam suas mãos e tinham um grande chapéu na cabeça.

Persona. A palavra passou do etrusco “phersu” para o latim, mas sua verdadeira origem é grega, que em definição simples e imediata designa um papel social ou um personagem interpretado por um ator. Como papel social (qualquer profissão, por exemplo), o indivíduo deixa, em alguns ambientes, de ser ele mesmo para viver esta outra versão sua, a de professor, advogado, médico, enfermeiro, ator… Como personagem, a palavra funciona, por excelência, como uma criação exterior que ganha vida através de um corpo, por um determinado período de tempo (normalmente diferente dos papéis sociais, que tendem a ser, na maioria dos casos, para a vida toda — lembrando que cada pessoa representa dezenas de papéis sociais). Ainda no campo das representações, é possível entender melhor a palavra “persona” como uma máscara. E é curioso que um modelo greco-romano, feito com um considerável espaço no lugar da boca para a voz per sonare (soar através de…) seja uma das grandes representantes desse dilema que nos rodeia o tempo inteiro, mas que só em ocasiões muito extremas é que consideramos raciocinar sobre ele. Se a gente representa papéis sociais o tempo inteiro, quando é que somos nós mesmos? Com quem? Por quanto tempo?

Para o suíço Carl Jung, “a persona é um complicado sistema de relação entre a consciência individual e a sociedade; é uma espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir um determinado efeito sobre os outros e por outro lado a ocultar a verdadeira natureza do indivíduo“. É a partir daí que podemos olhar para a relação que se estreita entre a enfermeira Alma (Bibi Andersson, em uma interpretação visceral, numa roda gigante de emoções) — prestem atenção ao nome de sua personagem — e a atriz Elisabet Vogler (Liv Ullmann, em seu primeiro filme com Bergman, numa interpretação que carrega todas as dores do Universo, dizendo apenas três palavras durante o filme todo) — prestem atenção no sobrenome, Vogler, o mesmo do ilusionista de O Rosto (1958). Durante uma interpretação de Electra, Elisabet tem um colapso nervoso e fica muda. Ou melhor, deixa de falar. Ela assume uma persona de mulher enferma, para, segundo a Doutora que cuidava de seu caso (Margaretha Krook), escapar da versão de mulher que a sociedade queria que ela fosse. Incapaz de amar, Elisabet mergulha e se diverte em seu narcisismo, como um prazer interno que ela é incapaz de transferir para um objeto de desejo ou outro alguém, sob outra perspectiva de amor. Ela demanda atenção e não se importa com mais nada, chegando a escrever para a Doutora que a enfermeira que cuidava dela era um “interessante caso de estudo“.

Junto à imensa transformação técnica que Bergman teve em Persona, um filme que realmente mudou sua vida e o tom de sua filmografia daí em diante, temos mais um trabalho bárbaro de Sven Nykvist na direção de fotografia. Desde o início, o artista procurou marcar as personagens como pedaços de si mesmas, como se estivessem incompletas, algo visualmente indicado com uma parte do rosto das atrizes escurecida e outra com luz frontal. A princípio isso é feito através do ambiente, no quarto de Elisabet, nos tirando da visão ampla do ambiente para focar em uma única coisa: um rosto. A saída do Universal, para o particular. Nykvist classificaria o processo de filmagens Persona como “tedioso”, apesar do soberbo resultado alcançado. E a fala do fotógrafo é compreensível se considerarmos que este é essencialmente um filme que intercala planos-sequências e muitos, muitos closes em rostos, bocas e… mãos. A primeira coisa que chamou a atenção de Bergman em suas atrizes, na pré-produção, e que ele destacou frequentemente no filme. No Prólogo, classificado como um “poema em imagens” onde se unem sacrifício, libido, crucificação, horror e morte, as mãos começam a aparecer com os seus diversos simbolismos, dando ideia de atividade e poder sobre alguma coisa — exceto quando está caída, simbolizando a morte. Ao longo do filme, ações como estender, colocar ou tirar a mão, especialmente do rosto, será uma das formas de comunicação entre as protagonistas.

No geral, existem três vertentes recorrentes de interpretação para Persona. Uma, afirma que Alma e Elisabet são duas pessoas distintas, passando pelo exato problema que o filme apresenta. Outra, diz que Alma é a persona de Elisabet e a última, diz que Elisabet é a persona de Alma. Neste ponto, é preciso ter uma ideia bem clara sobre o filme: ninguém nunca vai entendê-lo por completo. E isso é a melhor coisa da obra. Desde 1966 ela vem acumulando dissertações e teses das mais diversas ordens, debates acalorados sobre personalidade e convivência, críticas sobre técnica e beleza cinematográficas e, mesmo assim, ainda há coisa nova para ver e interpretar no filme, que não envelheceu um único segundo desde então. Experimental e metalinguístico, Persona é uma obra que usa de sua própria temática para descobrir-se, destruir-se e reconstruir-se, seja pelo gancho inicial e final, seja no momento da quebra dramática, no ápice da dissociação de personalidades. O filme simplesmente se queima, no meio da projeção, lançando-nos uma série de imagens — o mundo exterior onde tudo é som e fúria — para então voltar ao ponto em que estava. Ou pelo menos é isso que a gente acredita, a princípio.

Após a sequência em que Alma lê a carta de Elisabet, temos um silêncio constrangedor na casa, seguido por uma cena de um caco de vidro deixado propositalmente no chão para alguém pisar. Muda a cena. Alma está na sala. Vai até uma cortina e a afasta (momento em que o conhecimento oculto é revelado) e justamente neste ponto, o filme se quebra, queima, e então não estamos mais na casa. Vemos cenas aleatórias de uma comédia, um olho (perspectiva do diretor ou nossa?) e a máscara do próprio filme volta a ser colocada. Não a mesma, porém. A máscara de Persona COMO FILME, após os minutos 46 e 48 é outra.

Até ali, se descontarmos o Prólogo, toda a narrativa tinha uma montagem linear compreensível, a cargo de Ulla Ryghe, que fez um excelente trabalho rítmico e de adequação de personagens ou cenários na tela, processo acompanhado por uma trilha sonora (de Lars Johan Werle, que voltaria a trabalhar com Bergman em A Hora do Lobo, e então encerraria sua carreira no cinema) que sabe o momento de aterrorizar e nos deixar apreensivos. Vale também citar, nesse meio tempo, a ocorrência de uma das cenas mais eróticas do cinema, onde Alma relembra uma orgia com dois garotos e uma amiga, e onde Bergman rejeitou o flashback, deixando todo o relato e sua força libidinosa nas mãos da excelente Bibi Andersson. Mas este ainda é o momento da “normalidade”, se podemos falar algo assim, mesmo antes de o filme destruir a sua primeira máscara e então, colocar outra.

Desse ponto em diante, tudo muda. Ele se torna mais selvagem, a edição mais inconstante, com cortes bruscos e comparações visualmente incômodas (no bom sentido). A fotografia vai abandonando a névoa, os momentos difusos, e abraça definitivamente as sombras, que não cedem nem mesmo no momento em que deveria haver uma mudança positiva, com a visita do marido de Elisabet (Gunnar Björnstrand) à casa — que é cego, e sua atitude nesta parte da obra nos faz perceber uma coisa. A fusão de personalidades chegou a tal ponto que nem mesmo os sentidos além da visão conseguem mais captar as diferenças. A trilha sonora entra de vez no campo do terror e o filme se torna mais pesado, com as grandes crises de Alma como motor da história, a indiferença de Elisabet como vampirismo da energia vital de Alma e o tempo sendo plenamente dissociado da realidade comum, plasmado em mudanças de cenário e passagens de dia para noite apenas com um corte simples, como se a percepção dessas personagens estivesse inteiramente comprometida no momento em que se fundem uma à outra, lembrando-nos a situação mental da personagem de Harriet Andersson ao ver o “Deus-Aranha” em Através de Um Espelho (1961), animal que retorna aqui também.

É difícil especificar o que de fato acontece no final da película e nem vou entrar nessa seara, porque é um exercício unicamente pessoal (podemos falar sobre ele nos comentários, se vocês quiserem, é só levantar a questão), mas é importante relembrar que não existe uma interpretação fixa para o destino das personagens aqui. Bergman comentou diversas vezes que o filme pode significar “tudo e nada ao mesmo tempo“, cabendo ao espectador usar do que tem em mãos, ou seja, o próprio filme, para justificar e alimentar sua versão do que é a história. Persona é um filme difícil. É filme que parece não ter sentido algum — e a rigor, ele não tem: é um exercício de troca com o público, que precisa usar as peças e adequá-las, de alguma forma, nas estantes de símbolos que o diretor constrói –; é um filme incômodo e experimental, no sentido técnico e narrativo da palavra. Uma mudança total para Bergman e uma pérola inestimável da Sétima Arte, que se transforma a cada vez que a gente assiste. Um filme como nenhum outro. Um convite à muda de máscaras, à desconstrução e fusão de si mesmo a uma outra coisa. Persona.

Quando Duas Mulheres Pecam (Persona) – Suécia, 1966
Direção:
Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Bibi Andersson, Liv Ullmann, Margaretha Krook, Gunnar Björnstrand
Duração: 85 min.

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