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Crítica | Quando Só o Coração Vê

Mais uma trabalho humano e social com Sidney Poitier.

por César Barzine
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Quatro anos após o lançamento de O Sol Tornará a Brilhar, Sidney Poitier integra mais uma obra-prima sobre racismo e relações humanas. Mas se o filme de Daniel Petrie era pautado em um centro familiar composto exclusivamente por negros em uma locação interna, a produção de Guy Green é conduzida através das inter-relações sociais-raciais entre um homem negro e uma adolescente branca e deficiente visual sendo ambientado a partir de uma locação externa, que é o parque em que os dois se encontram. Assim, a geografia do longa acaba não sendo protagonizada por um mesmo local, e sim se intercala entre as casas desses dois personagens e o resto do mundo.

Essa questão de “sair de casa” é um ponto crucial e onipresente ao filme, pois Selina, como cega, tem o convívio limitado em relação ao espaço e, ao conhecer Gordon, todas as portas da realidade – que antes eram negadas a ela – vão se abrindo. Tal limitação se devia ao fato de sua mãe, Rose-Ann, ser completamente negligente com ela. O filme começa com a jovem implorando para alguém levá-la ao parque, enquanto Rose-Ann demonstra pouco se importar. A única relevância que Selina possui para ela é servir como empregada doméstica, caracterizando uma relação de total submissão da filha para a mãe.

E assim como O Sol Tornará a Brilhar é dotado de um aspecto marginal e agressivo em seu melodrama, a execução de Quando Só o Coração Vê segue exatamente o mesmo rumo. A família de Selina mora em um apartamento bem pobre, chegando a soar como precário. A falta de respeito que a garota sofre e toda a sua infelicidade amplia esse lado brutal e fornece uma alta carga de amargura na experiência do espectador. Do início ao fim do filme, ela demonstra os atritos que sofre, tornando a obra pesada e potencializando a interpretação de Elizabeth Hartman. Esta, cuja dor, é expressa ora pela cegueira, ora pela vida pessoal que possui. O momento em que ela se desperta em casa após voltar da rua é um clímax de grande destaque por sintetizar esses dois fatores. Nele, Selina se sente completamente abismada pela vida miserável que leva; ela chora, grita, lamenta, movimenta o corpo, configurando uma atuação comovente e de enorme expressividade.

O mesmo se repete na cena do terceiro ato em que a adolescente briga com a mãe após ela descobrir sua amizade com Gordon. A garota revive o momento trágico do passado que a tornou cega, criando um contraste que deixa o espectador tenebroso diante da possibilidade de se repetir algo semelhante naquele momento. Porém, nem tudo é esse terror dramático para a protagonista. Ao conhecer Gordon, sua vida muda completamente, e neste ponto que se forma o outro lado do longa: sereno e doce, o casal forma uma relação cheia de ternura, uma daquelas belíssimas amizades de pessoas diferentes que se completam entre si. 

A construção do personagem de Poitier acerta por ir além de demonstrar apenas um homem simpático e carinhoso. Ele é também uma figura espirituosa capaz de cativar qualquer um. Desde o início da relação entre os dois, Gordon tem uma postura recheada de brincadeiras com Selina, criando uma figura singular e despojada diante dela. Sua interpretação evoca trejeitos quase que burlescos, mas dando lugar também para um sujeito em dúvidas quanto a Selina e ao fato dele ser negro. O silêncio de Poitier e os instantes em que ele permanece mais sério são excelentes para expressarem essa onda de questionamentos que habita dentro dele. A ligação com Selina se expande, e ele, de modo implícito, nos faz questionar ao seu lado: como manter laços tão profundos com uma jovem branca e cega perante a sociedade e a si mesmo?

Gordon não tem problema nenhum com o fato de ser amigo de uma pessoa cega e branca. O problema é que o sentimento que ele possui por ela está crescendo, daí surgem a culpa dele e o preconceito alheio. Seu irmão chega a comentar de forma provocativa: “não sabia que você estava indo atrás de cegas por aí“. Depois, quando Gordon passa a se preocupar com a educação de Selina, ele exclama: “que os brancos tomem conta da educação de suas mulheres, eles nunca facilitaram nossas vidas!“. Já Selina não apenas é recíproca com o sentimento de Gordon, como também demonstra um amor ainda maior; diz isso a ele, e também chega a dizer que “quer fazer amor com ele”. A cena em que os dois se beijam pela primeira é uma belíssima junção das dúvidas dele e das certezas dela em relação à paixão que ambos sentem.

O desenvolvimento desse amor que Selina vive pode também ser acompanhado pela aparência dela, que passa a ficar cada vez mais bonita e arrumada – principalmente quanto ao cabelo – à medida que seu convívio com Gordon se prolonga. A paixão dos dois apenas toma um corpo completo bem no final do filme, quando Gordon já superou as dúvidas que o atormentava e agora possui clara consciência do que quer. Até esse momento chegar, o personagem acabou tomando conhecimento dos muitos transtornos que já passou e passa Selina, e o filme não tem medo de tratar dessas questões tão cruéis, tornando ele, em meio ao tom doce imprimido pelos sentimentos do casal, uma sequência de desgraças na qual a protagonista encontra refúgio no ombro daquele homem. Entre os tais temas apresentados estão negligência familiar, falta de apoio aos deficientes visuais, racismo e até estupro.

Quando Só o Coração Vê é, desta forma, uma mistura de sonho e pesadelo, suave e trágico. A fusão entre uma coisa e outra retroalimenta toda uma tensão que surge em certos momentos – dois deles citados no terceiro e quarto parágrafo. Outra passagem de forte tensão se encontra na cena em que Selina tenta atravessar a rua sozinha numa faixa cheia de pedestres. Essa simples cena vai ficando a cada segundo mais sufocante, extraindo um ótimo trabalho de decupagem que oscila em enquadramentos de todos os tamanhos naquele ambiente, tornando-o amplo e enxuto ao mesmo tempo. 

A eficiência da decupagem também se repete em outros instantes, geralmente em locais externos – o mesmo vale para a qualidade da fotografia -, mas é justamente na transição de um lugar interno para o lado externo que encontra o melhor uso da decupagem. No desfecho do filme, onde Gordon corre para alcançar Selina, o modo como os enquadramentos se articulam em planos abertos e ângulo plongée é fantástico. O que, ainda nessa mesma sequência, junto com o uso da trilha sonora, que vai oscilando de um tom cômico a um som mais melancólico, acaba formando um final extremamente bonito; onde esses maneirismos constroem perfeitamente a cena que, ao mesmo tempo que mostra os dois se separando,  também sugere a união deles próprios.

Quando Só o Coração Vê não expande o tema do racismo, o que não faz falta, até porque a principal personagem do filme é Selina. Mas mesmo não desenvolvendo muito essa pauta – ao contrário dos demais filmes com Sidney Poitier – o trabalho de Guy Green ainda é uma obra que transborda um intenso calor humano a todo momento. Tamanha sensibilidade que é envolta a tantas desgraças está muito além de um simples exercício de empatia. É algo ainda mais forte por estar acompanhado da profunda beleza que Gordon foi capaz de fazer com que Selina enxergasse. Poucos filmes conseguiram essa sinergia do belo e do rude como esta obra. E como ela surge do andamento de uma amizade que antecede um romance, percebemos, desta forma, toda a verdadeira força em meio aos laços afetivos: a de reerguer um novo olhar em frente à vida.

Quando Só o Coração Vê (A Patch of Blue) – EUA, 1965
Direção: Guy Green
Roteiro: Guy Green
Elenco: Sidney Poitier, Shelley Winters, Elizabeth Hartman, Wallace Ford, Ivan Dixon, Elisabeth Fraser, John Qualen, Kelly Flynn, Debi Storm, Renata Vanni, Saverio LoMedico
Duração: 105 minutos

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