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Crítica | Quanto Vale Ou É Por Quilo?

por Leonardo Campos
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Para entendermos a sociedade, precisamos compreender as “regularidades nas ações sociais dos indivíduos”, além de ter uma breve noção dos processos de dominação (tradicional, legal) a que estamos submetidos e que fazem parte de um sistema de regras e normas seculares. O crédito da reflexão fica para o pensador Max Weber e seus escritos que exalam por todos os poros de Quanto Vale ou é Por Quilo?.

A produção se inspirou no conto Pai Contra Mãe, de Machado de Assis, publicado na coletânea Relíquias de Casa Velha, de 1906, e nos documentos do Arquivo Nacional, para tecer a sua ácida crítica ao praticamente irretocável terceiro setor: as ONGS. Em A Causa Secreta, de 1994, o cineasta traçou um painel da falta de solidariedade no mundo, uma espécie de embrião para a discussão dentro deste mesmo tema, mas desta vez, sob outro viés: o rentável mercado originado das campanhas sociais.

Na visão do cineasta as ONGS são um terreno fértil para o estabelecimento da corrupção e uma forma de perpetuação da miséria, isto é, espaço que em muitos casos, perpetua as contradições históricas que engendram a sociedade brasileira, desde o seu desbravamento pelos portugueses até as desigualdades sociais contemporâneas.

Para realizar a sua crítica, o cineasta nos apresenta a história de uma escrava grávida capturada que após ser entregue ao seu dono, precisa abortar a criança. Em paralelo com os dias atuais, uma ONG decide implantar um projeto de informática numa zona periférica, mas durante o desenvolvimento, uma das funcionárias percebe que há superfaturamento dos computadores. Assim, ela precisará ser eliminada, e, para isso, um jovem negro e também periférico é contratado para eliminá-la, haja vista a sua “predisposição” ao crime: desempregado e com a mulher grávida em casa, o rapaz está disposto a fazer o que for possível para sobreviver.

Enquanto um segue piamente as tais regularidades das ações sociais dentro de seu habitat, a outra decide quebrar com certos paradigmas, tendo a vida como o preço a ser pago. Retratos da vida real, transformados num cruel e angustiante tecido narrativo audiovisual. Bianchi já havia tecido críticas afiadas ao reduto que mais adora cutucar, a classe média brasileira, em Cronicamente Inviável. Nesta produção, sugere mais do que afirma, provoca discussões que não se fecham em si e expõe esquemas sem atar nós, o que pede um espectador bastante ativo e de coração forte, pois o filme esfrega em nossa cara a corrupção generalizada e o assalto ao dinheiro público.

No que tange aos elementos da linguagem cinematográfica, o filme é bastante feliz em suas escolhas. A câmera eficiente sabe bem o momento de captar o morro num plano geral, ao passo que em outra passagem, fecha bem no rosto de uma criança pobre, oriunda de uma das campanhas sociais criticadas pelo roteiro do filme. A montagem de Paulo Sacramento é bastante eficiente, assim como a trilha sonora de Ricardo Reis, elementos que se relacionam bem com o desempenho dos mesmos atores em tempos distintos, o que colabora com a distensão temporal e a unidade narrativa. A linguagem documental, marco na trajetória de Bianchi, também se faz presente, mas não dispersa, ao contrário, surge como um elemento somatório para o estabelecimento da crítica sociológica.

No campo das críticas sociais, o filme exala julgamentos para todos os lados. Trata da falência do Estado no cumprimento das suas responsabilidades, bem como melhor administração das políticas públicas. Não basta apenas distribuir renda, mas gerenciar detidamente o destino das verbas públicas. Outro viés crítico é o da origem de quem financia solidariedade. Segundo o filme, tais financiadores estão preocupados com o retorno, algo do tipo, “as pessoas precisam ver as minhas ações”. Ao levar comida na rua em grandes carros e distribui-las para os pobres esfomeados pode ajudar o lado espiritual, fazer o doador se sentir bem, mas ao contrário do que se imagina, como efeito social, perpetua o sistema da pobreza.

Há também a comparação do sistema carcerário com o navio negreiro, aponta que os presídios também fazem parte de um sistema que gera renda, haja vista os gastos dos detentos com comida, hospedagem e geração de empregos quando estes empregos se multiplicam. Os idosos no asilo, ao fazer as suas necessidades fisiológicas obrigatoriamente em fraldas, ao passo que são ignorados pela família e maltratados pelos funcionários nos revela uma realidade assustadora e que pode estar bem próxima de nós todos, no asilo da esquina.

No decorrer dos seus 104 minutos, a trama retrata a força coercitiva das regras sociais e ao fazer o paralelo com o conto de Machado de Assis, faz uma espécie de leitura marxista sobre os escravos como mercadorias bastante rentáveis nos idos dos séculos XVI ao XIX, tal como os seus descendentes, indivíduos que compõem o painel de pobres, miseráveis e excluídos na contemporaneidade.

No século XVIII, conforme apontam os dados pesquisados no Arquivo Nacional, os senhores davam aos escravos a liberdade a juros crescentes ao ano. O mercado da “bondade” que se tornou bastante lucrativo. Na era Colonial, para sobreviver com o mínimo de decência, alguns negros viravam capitães-do-mato, tendo como missão salvar escravos fugitivos. Ao fazer o paralelo contemporâneo, o filme nos coloca diante de situações em que negros são colocados contra negros, dentro de um sistema calcado no “salve-se quem puder”.

No livro Câmera-Faca: o Cinema de Sérgio Bianchi, o crítico João Luiz Vieira alega que os filmes do cineasta são narrativas “centradas nas fraturas do tecido social de um mundo, em geral, degradado ecologicamente e povoado por pessoas acuadas e submetidas a ataques cotidianos”. Lançado em 2005, para alguns especialistas na época, foi um filme que refletiu a Era FHC, período marcado pela incompetência do Estado no que diz respeito ao gerenciamento da pobreza no Brasil.

Outros programas surgiram posteriormente, oriundos de politicas públicas de um sucessor mais populista e interessado nas causas sociais. Trouxeram mudanças, mas também ecoaram as celeumas de um mal que parece perseguir a nação como uma maldição de filmes de terror: a corrupção. Talvez uma sequência do filme fosse necessária para radiografar como se deu a continuidade deste sistema. Se não houver esta opção, leia os noticiários e assista (criticamente) os telejornais. Você vai ver que nada mudou, ao contrário, parece estar cada vez mais degradado e inconsequente.

Quanto Vale ou é Por Quilo? — Brasil, 2005
Direção: Sérgio Bianchi
Roteiro: Eduardo Benaim, Sérgio Bianchi
Elenco: Ana Carbatti, Ana Lúcia Torre, Caco Ciocler, Cláudia Mello, Herson Capri, Lena Roque, Leona Cavalli, Myriam Pires, Silvio Guindane
Duração: 104 min

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