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Crítica | Quatro Noites de um Sonhador

Sonhos destruídos e recriados.

por Kevin Rick
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Vagamente baseado no conto “Noites Brancas” (1848), de Fiódor Dostoiévski, Quatro Noites de um Sonhador pode ser considerado um dos pioneiros do “subgenêro” de filmes franceses românticos vagando pelas noites de Paris com suas figuras solitárias e egocêntricas condenadas a buscar paixão em meio aos interesses humanos. Com longas tomadas navegando pelas ruas parisienses, balsas fluviais à luz de velas, artistas de rua, uma promessa de amor e corações quebrados em busca de aconchego, Robert Bresson cria um sonho romântico lindamente enquadrado contra as margens do Rio Sena. Prestes a ser destruído.

Por que destruído? Bem, porque Bresson é um cínico que não se importa com a saúde emocional do seu espectador. Ou melhor, se importa apenas em alquebrar sentimentos com seu minimalismo realista que abala nossas doses de existencialismo. É basicamente isto que ele faz com seu protagonista, o pintor Jacques (Guillaume des Forêts), um sonhador que se depara com uma jovem mulher, Marthe (Isabelle Weingarten), prestes a cometer suicídio pulando da Pont-Neuf. A partir desse encontro, a história romântica parte de duas frentes: o coração partido de Marthe pelo abandono do seu ex-amante que deveria encontrá-la na ponte, e a paixão crescente de Jacques pela moça. Nos próximos quatro dias, os dois personagens vagam por Paris compartilhando dores e sonhos.

Não parece uma premissa exatamente bressoniana, não é mesmo? Claro, há o tema suicida, a história simples e o olhar detalhista para cenografia e gestos do cineasta, mas também temos uma sensação fantasiosa atípica do diretor. Não é necessariamente um místico religioso como o autor gosta de abordar, e sim uma vertente romântica quase erótica. Existe sedução com cenas de nudez, toques corporais e olhares com desejo, assim como o autor se distancia o máximo possível da feiura de Paris, retratando uma cidade bela com interlúdios graciosos de música e luzes, e até um humor sutil na interação desajeitada e constrangedora dos protagonistas. E, ainda assim, mesmo visualmente belo, a mudez do ambiente e as performances superficiais dos atores amadores continuam passando o sentimento de letargia e inércia bressoniana, especialmente pontuada pela história de solidão.

Por parte da fita, tentei fazer sentido desse paradoxo, paralelo e/ou aparente contradição da linguagem. E quando o desfecho trágico abate (mais dele adiante), houve uma ressignificação da experiência para mim. A beleza da obra parece ser um reflexo do imaginário de Jacques para essa história – e até para como nós imaginamos romance. Ele é um idealista. Um sonhador. Bresson parece querer refletir essa fantasia. De como gostaríamos de enxergar o mundo e o amor, especialmente o artista que tem controle do seu mundo ficcional, como uma história cheia de altos e baixos, mas com um aspecto encantador e um final feliz. Um final feliz que parecia se concretizar nos minutos finais da obra. Mas uma reviravolta destrói essa imagem quando Marthe corre para os braços do homem que a abandonou.

No entanto, não estamos diante de uma mudança repentina para choque pessimista. Estava lá o tempo todo, e Jacques não viu ou não queria ver – e por parte do tempo, nem eu. Talvez seja mais fácil ver uma contradição do que indícios. Mas Bresson deu as pistas de maneira orgânica, como a intenção egoísta de Marthe para usar o antigo amante para fugir de casa – algo que me parecia uma consequência, e não o intuito principal, como o desfecho apresenta. E também do próprio egoísmo de Jacques ao usar a paixão pela moça como desculpa para sua obsessão por ela como inspiração para suas pinturas – notem como ele vaga por Paris obcecado por rostos femininos, como em busca de uma modelo artística que floreie seu talento.

Por fim, mesmo com as sutilezas intrigantes e o desfecho impactante, não consigo tirar a sensação de banalidade da experiência romântica. Não gostaria de caracterizar a obra como clichê, pois é provavelmente pioneira em termos de romance francês cinematográfico, e também nem genérica, afinal, há um contexto debaixo da superfície muito delicado sendo construído até o clímax. Mas a construção ambiente bela, porém superficial e repetitiva, e a forma como Bresson move a narrativa em conta-gotas em torno de muita trivialidade amorosa, não conseguiu me envolver como outros trabalhos imagéticos do autor. Aquém de uma obra-prima, mas ainda estupendo, Quatro Noites de um Sonhador é mais um degrau cinematográfico do cinismo de Bresson, agora com o romance e o sonho, demonstrando a fragilidade do amor e da idealização frente a realidade. No final, Jacques coloca sua dor na pintura, extraindo beleza do trágico, tal qual seu criador – e nos meus devaneios, me pergunto se Bresson enxerga o divino dessa forma.

Quatro Noites de um Sonhador (Quatre nuits d’un rêveur) – França, 1971
Direção: Robert Bresson
Roteiro: Robert Bresson (baseado no Noites Brancas (1848), de Fiódor Dostoiévski)
Elenco: Isabelle Weingarten, Guillaume des Forêts, Maurice Monnoyer, Lidia Biondi, Patrick Jouanné
Duração: 87 min.

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