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Crítica | Quem Censurou Roger Rabbit?, de Gary K. Wolf

Um legítimo e sério noir, só que com cartuns.

por Ritter Fan
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O fenomenal longa-metragem Uma Cilada para Roger Rabbit, por incrível que pareça, foi baseado – ou inspirado – em um romance noir de sete anos antes escrito pelo americano Gary K. Wolf que, também por incrível que pareça, é uma detetivesca de pegada séria, inspirada em obras de autores como James M. Cain, Dashiell Hammet e Raymond Chandler mesmo que passada em um universo em que personagens de desenhos convivem com seres humanos. Se a versão cinematográfica dá uma aula sobre como adaptar uma obra literária (nada de transliterações como tanta gente pede), o livro de Wolf é uma aula em como apropriar-se de estilos de terceiros para criar um fascinante e rico universo próprio.

Quem já tiver visto o filme e decidir aventurar-se pelo romance precisa ter em mente justamente o que mencionei acima: o que Robert Zemeckis colocou nas telonas usa os elementos informadores de Quem Censurou Roger Rabbit?, mas o longa é tonalmente e narrativamente bem diferente do romance, ainda que seja perceptível que a pegada mais adulta do livro tenha “sangrado” um pouco para o roteiro, o que provavelmente resultou em algumas cenas que não seriam tipicamente inseridas em um lançamento que pretendia – e conseguiu – encontrar público em todas as faixas etárias. O romance de Gary K. Wolf, portanto, é um verdadeiro noir no estilo clássico que se diferencia pela bizarra coexistência dos tais personagens de desenho com humanos como se fosse a coisa mais comum do mundo, mas que conta com diversas diferenças importantes em relação à adaptação audiovisual.

Essas diferenças fazem com que os desenhos falem também por meios de balões de fala momentaneamente físicos e palpáveis como em uma revista em quadrinhos (essa característica pode ser suprimida, se eles assim desejarem) e possam criar cópias temporárias perfeitas deles mesmos (os “dopels“) que, depois de alguns dias, se desmancham. Além disso, em termos de ambientação, o livro se passa em uma década de 80 desse universo (e não na década de 40, como no longa) em que Toon Town não existe e em que os desenhos trabalham primordialmente em tiras em quadrinhos para serem publicadas em jornais, apenas subsidiariamente na indústria cinematográfica (por isso venho evitando usar o termo “animações”, preferindo “desenhos”). Em outras palavras, Quem Censurou e Uma Cilada são obras que têm tanta coisa em como quanto têm de diferenças, o que é ótimo.

Na história, Roger Rabbit, “ator” de segunda linha de tiras em quadrinhos, contrata o humano Eddie Valiant para ele descobrir o porquê de os Irmãos DeGreasy, poderosos donos de uma editora de quadrinhos, não cumpriram a promessa de que o coelho teria sua própria tira, deixando de ser coadjuvante do Bebê Herman. A bem da verdade, o que descrevi anteriormente está mais para uma premissa, pois, exatamente como os melhores romances noir, a contratação de Valiant, que inicialmente hesita muito em trabalhar para um cartum por puro e explícito preconceito, é apenas a ponta do gigantesco iceberg que ele vai descobrindo e que passa por um sem número de personagens conhecidos ou não de quem viu o filme. Temos a escultural Jessica Rabbit, claro, que fala, aqui, sua frase mais famosa do filme, mas que não parece gostar tanto assim de Roger Rabbit e temos a fotógrafa Carol Masters que parece esconder um segredo, além de, claro, os irmãos Rocco e Dominic (os DeGreasy) em uma trama que envolve pornografia (sim!), esquemas de chantagem, corrupção policial e assim por diante, exatamente o que podemos esperar de uma obra escrita pelos grandes do subgênero.

Wolf não se furta em usar expedientes variados para criar reviravoltas na narrativa, uma delas – de longe a mais importante – envolvendo uma decisão corajosa sobre o próprio Roger Rabbit que não revelarei aqui por puro preciosismo, já que não seria spoiler. Com essa decisão, a história mergulha mais agressivamente em um tom sombrio e leva Valiant a mais furiosamente investir tudo no desvendamento dos diversos mistérios interconectados que contam até mesmo com o bom, velho e indispensável MacGuffin, no caso uma chaleira aparentemente comum que desapareceu da casa de Roger Rabbit. E o mais interessante é que, por mais absurdas e bizarras que sejam as construções de Wolf, elas realmente acabam fazendo sentido ao final.

Outra excelente característica do autor é sua riqueza vocabular. Wolf parece divertir-se demais escrevendo aliterações (normalmente vindas de Roger Rabbit) e comparações (na forma de metáforas, alegorias e até mesmo com aforismos) que ilustram perfeita e originalmente as mais variadas situações. A voz de Eddie Valiant como o detetive durão, mal vestido, alcoólatra, mulherengo e que não tem onde cair morto é uma espécie de amálgama de todo o arquétipo de detetives, policiais e investigadores dessa estirpe na literatura e no audiovisual, sem que ele traia suas características por um momento sequer. Sim, ele se afeiçoa a Roger como é de se esperar, mas ele nunca deixa de ser o durão e grosseirão que fala o que acha que tem que falar sem papas na língua. Por outro lado, a verborragia do autor cansa um pouco, se eu quiser ser honesto, assim como a quantidade infinita de reviravoltas na trama, duas características que mereciam ter sido podadas por seu editor, mas que de forma alguma estragam a experiência (ok, atravanca um pouco às vezes, mas não mais do que isso).

Quem Censurou Roger Rabbit? é um romance noir legítimo em todos os seus aspectos que, não fosse sua premissa de reunir humanos e cartuns em um universo muito singular, poderia facilmente ter sido escrito nos anos 30 ou 40. É quase como ler uma obra de Raymond Chandler depois de o autor tomar algumas doses de um chá de cogumelos particularmente concentrado. E, se seu primo cinematográfico é uma obra bem diferente, ele inegavelmente é da mesma família, formando uma dupla absolutamente imperdível em suas respectivas mídias.

Quem Censurou Roger Rabbit? (Who Censored Roger Rabbit? – EUA, 1981)
Autoria: Gary K. Wolf
Editora original: Ballantine Books
Data original de publicação: 06 de junho de 1981
Páginas: 252

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