Lançado em 1988 pela CBS, Quem Não Vive Tem Medo da Morte é o 13º disco solo de Ney Matogrosso, um trabalho que reafirma sua fase mais contida e refinada, ensaiada em Bugre (1986), mas oficialmente iniciada em Pescador de Pérolas (1987). Aqui, equilibram-se MPB camerística, pop sofisticado e leves toques de samba-jazz. A direção musical de Mazzola e a coordenação de Eva Straus priorizaram timbres orgânicos — violões dedilhados, percussões assertivas, metais pontuais e cordas discretamente entremeadas — que valorizam a voz de Ney sem recorrer a muitos recursos. A capa está entre as mais belas de sua trajetória. Seu rosto e indumentárias dominam todo o primeiro plano da fotografia; o chapéu abaixado sobre os olhos cria uma silhueta à beira do enigma: quem é esse indivíduo? Esse uso do chapéu, aliás, nos faz voltar para Bandido (1976), quando o acessório era provocação pura. Aqui, porém, ele assume caráter lendário e ritualístico, um véu que oculta o olhar para revelar o interior do intérprete, anunciando um disco cheio de sombras e sutilezas.
As extremidades do projeto, embora cumpram bem o papel estrutural, são as faixas menos convincentes, para mim. Felicidade Zen inaugura o repertório com tensão controlada, alternando pausas instrumentais e sopros animados. Fica na cabeça, mas não alcança o mesmo nível de elaboração do restante. No fechamento, Caro Amigo (adaptação de L’Anno Che Verrà de Lucio Dalla) mantém a elegância poética e a orquestração de base, mas lhe falta a carga dramática ideal para coroar o conceito existencial do projeto. A partir de Dama do Cassino, de Caetano Veloso, o disco ganha densidade. Inspirado no bolero, o arranjo de sopros moderados e cordas cria um cenário de cabaré melancólico, onde a voz de Ney veste a personagem sedutora com certa ironia. A seção rítmica, discreta, acentua cada frase como se fosse apostar num lance de sorte.
Na experimental Chavão Abre Porta Grande, Itamar Assumpção e Ricardo Guará desconstroem clichês sociais ao som de samba-jazz. Palmas artesanais, percussão orgânica e improvisos leves criam um contraponto rítmico à letra crítica. Ney assume um tom cínico e articulado, passeando por variações de intensidade que jogam luz nas palavras e reafirmam sua capacidade de transformar discurso urbano em peça de invenção sonora. O minimalismo alcança pico em Um Rei, de Celso Fonseca e Ronaldo Bastos, onde violões dedilhados e cordas suavemente entoadas sustentam um vocal delicadíssimo, que fala da futilidade do poder. Logo em seguida, a sensacional Recompensa introduz um samba sofisticado com coro feminino, progressões harmônicas que alternam tensão e conforto, e uma celebração refinada da reciprocidade afetiva, apontando o amor como antídoto às angústias existenciais.
Vamos pra Lua convida ao voo poético, enriquecido por sintetizadores etéreos e sopros com ligeiro reverb. A métrica livre e o fraseado flutuante de Ney sugerem um deslocamento emocional que transforma o cotidiano em paisagem de sonho e leveza. Em seguida, Todo Sentimento, de Chico Buarque e Cristóvão Bastos, atinge rara leveza camerística: piano, cello e oboé orquestram uma paisagem delicada, e cada pausa vocal de Ney se converte em ponto de luz, realçando o poder germinativo de cada palavra, falando de amor com profundidade e ternura. Em Só, de Oswaldo Montenegro, a solidão é expressa através de um baixo de som suave, um piano tocado com espaço entre as notas e uma guitarra com timbre limpo, criando um clima que transmite o vazio emocional da música. Logo depois, Tudo é Amor, composição de Laura Finocchiaro e Cazuza, retoma a atmosfera mais conhecida: harmonias amplas, cordas suaves e um refrão que fala de resiliência emocional. Ney adota tom limpo e sereno, conferindo à canção a leveza de quem crê na regeneração do afeto.
Quem Não Vive Tem Medo da Morte constrói uma trajetória segura, onde as faixas se encaixam com naturalidade em uma estética mais contida, madura e detalhista. Ney Matogrosso conduz esse movimento com precisão e sobriedade, delineando sua nova etapa artística, marcada pela introspecção, pela força das sutilezas e por escolhas que falam mais pelo cuidado do que pelo impacto.
Aumenta!: Recompensa
Diminui!: —
Quem Não Vive Tem Medo da Morte
Artista: Ney Matogrosso
País: Brasil
Lançamento: 1988
Gravadora: CBS
Estilo: MPB, Samba, Música Latina, Pop
Duração: 38 min.
