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Crítica | Querelle (1982)

por Luiz Santiago
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Todo homem mata aquilo que ama.

Oscar Wilde

Lançado quase três meses depois da morte de seu diretor, Rainer Werner Fassbinder, Querelle (1982) é uma poética e instigante adaptação de Querelle de Brest, romance de Jean Genet escrito entre 1945 e 1946, mas lançado apenas em 1947, na França. Dada a escrita peculiar de Genet e as muitas modificações no roteiro que Fassbinder fez ao primeiro tratamento textual de Burkhard Driest, o filme ganhou um aspecto de sonho, a crônica de um delírio violento totalmente marcada pela masculinidade, em inúmeros de seus aspectos positivos e negativos, da emoção e afetividade às visões de mundo e sexualidades.

No papel principal está Brad Davis, marinheiro do Le Vengeur que chega ao porto de Brest (França), local onde passará alguns dias e onde ele vê a oportunidade de realizar os mais diversos prazeres, dando lugar a obscuros impulsos que o fazem visitar, em curto espaço de tempo, diversos papéis sociais e também de entendimento de si próprio, indo da criminalidade ao gozo com homens e mulheres; da traição de um amigo narcísico à salvação por alguém que nutria um desejo mal-contido por ele, o Tenente Seblon (Franco Nero), responsável pelo navio.

Mais uma vez com Xaver Schwarzenberger na direção de fotografia (parceiro de Fassbinder em Berlin Alexanderplatz, Lili Marlene, Lola e O Desespero de Veronika Voss), desta vez dividindo os créditos com Josef Vavra, que também fez parte da equipe técnica de outras 4 obras do diretor –, o filme é um eterno crepúsculo cercado por símbolos fálicos, algo que a direção de arte fez questão de destacar na arquitetura, nos detalhes do Bar Feria e nos desenhos nas paredes da cidade. Mergulhado em diversas nuances de amarelo, o filme abraça o homem em sua potência e em sua fraqueza, da mesma forma que o roteiro costura esse Universo visual intenso, violento e cegante à expansiva forma como o sexo é tratado aqui, como um estridente núcleo de libido cheio de preconceitos e leituras rasas, pelos personagens, daquilo que é ser gay, hetero, homem ou mulher.

Os homens em Brest tendem a um estado de negação daquilo que lhes dá prazer, procurando manter uma postura de macho dominador e inabalável a despeito de suas crises existenciais, inseguranças, horrores internos, infâmia e reais vontades. O amor é uma piada que esse Universo masculino (majoritariamente tóxico) escanteia ou joga para a mulher — a diva do local, vivida de maneira fenomenal por Jeanne Moreau –, a quem “amam” e desejam, mas também destratam e desprezam, num conjunto de machismo, homoeroticismo e co-dependência que Fassbinder filma de maneira crua, usando o crime, a traição, a covardia e a injustiça como cimentadores. Uma série de contrariedades marca este Universo, que é permeado pela ideia de potência, fertilidade e força na mesma medida em que está permeada pela ideia de declínio (moral e físico), de fraqueza e de aproximação da morte.

O que eu não gosto do filme são as divisões em “capítulos” pelos letreiros que servem como mudança de bloco, como passagem dos dias, como uma nova camada de personalidade dada a esses indivíduos. Da primeira vez que isso acontece parece algo realmente interessante, mas à medida que o filme avança as cartelas com citações se tornam cada vez mais presentes, com curtos espaços de tempo, quebrando bastante o ritmo da obra. Em Querelle, a beleza dominante na cor, figurinos, desenho de produção e trilha sonora criam uma utopia onde o profundo exagero retrata doenças sociais e pessoais por todos os lados: assassinato, corrupção policial, tráfico de drogas, roubo, machismo, homofobia, misoginia…

É como se o sonho inicial se tornasse em um pesadelo, onde o íntimo sofrimento aliado à sexualidade reprimida (ou não plenamente compreendida) ultrapassa as fronteiras do Universo pessoal. Nesse sentido, Querelle é o oposto de As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, inclusive na forma como elenca a relação entre poder, desejo e abandono em um cenário claustrofóbico e barroco. Por falta de referências posteriores, visto que o diretor morreu prematuramente, colocamos este filme ainda na Fase Histórica de Fassbinder, iniciada com Bolwieser – A Mulher do Chefe de Estação e cujo produto cinematográfico mais conhecido talvez seja a Trilogia da Alemanha Ocidental, formada por Maria Braun, Lola e Veronika Voss.

No entanto, me parece que em tema e estética, a obra marcaria um novo momento para o diretor. Até a concepção política desencantada, pessimista, destrutiva (notem que, bêbado, Querelle chega a fazer a saudação nazista para Nono, personagem de Günther Kaufmann) está aqui delineada de outra forma, coberta por mantos de humanidade e desumanidade. Prematuramente, Fassbinder encerrou sua carreira fechando um ciclo aberto lá em seu primeiro longa-metragem, cujo título serve como definição para o que vemos acontecer aqui em Querelle. Neste Universo, o amor é definitivamente mais frio que a morte.

Querelle (Alemanha Ocidental, França, 1982)
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder, Burkhard Driest (baseado na obra de Jean Genet)
Elenco: Brad Davis, Franco Nero, Jeanne Moreau, Laurent Malet, Hanno Pöschl, Günther Kaufmann, Burkhard Driest, Roger Fritz, Dieter Schidor, Natja Brunckhorst, Robert van Ackeren, Werner Asam, Isolde Barth, Axel Bauer, Neil Bell, Gilles Gavois, Wolf Gremm, Karl Scheydt
Duração: 108 min.

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