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Crítica | R.U.R. – Robôs Universais de Rossum, de Karel Čapek

por Luiz Santiago
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Há um prazer todo especial em ter contato com obras que carregam marcos históricos consigo, como esta peça tcheca chamada R.U.R. – Robôs Universais de Rossum, já publicada aqui no Brasil sob o título A Fábrica de Robôs. Datada de 1920, R.U.R. ficou famosa pela representação de certa forma melodramática, trágica, mas também esperançosa de uma relação de dominação e consequente extinção da espécie humana pelo contato com uma outra espécie. Uma espécie que no original é chamada de robota (plural: roboti), termo que introduziu a palavra robô nos idiomas do mundo e, claro, também na ficção científica.

O autor da peça, Karel Čapek, esclareceu que a palavra foi criada por seu irmão Josef, usando o termo tcheco rab (escravo) como base. Com efeito, os robôs da peça, além de não serem robôs no sentido que a gente conhece hoje — mais sobre isso adiante — são feitos exclusivamente para trabalharem para os homens, portanto, a palavra dá conta de indivíduos que executam um “trabalho constante e extenuante“. As condições dessa ocupação tornam o termo em “trabalho escravo“, e aí a gente já tem uma clara noção do que ele significa em sentido amplo, abarcando não só um tipo específico de criatura, mas também a sua condição de existência; sua condição de vida-para-o-trabalho.

Só da concepção original da palavra e do uso que o autor faz dela na peça há um gigantesco número de possíveis leituras e interpretações aqui, não só dentro das relações de trabalho e posterior luta entre as classes, mas também no escopo ideológico que os dois lados exibe, além do caráter de alienação e controle de pensamento ou ações aos quais os robôs são submetidos. Como eu disse antes, essas criaturas não são robôs no sentido de automação que hoje conhecemos, mas criações biológicas artificiais, sintéticas. São seres montados com todos os órgãos que um ser humano possui e fisicamente iguais se comparados aos seres humanos. A única diferença entre as duas espécies é o fato de uma ter alma e a outra não — e aqui não estou chegando à conclusão de modo interpretativo, mas de modo puramente factual: é o que a peça literalmente nos diz.

Numa comparação com criaturas similares que conheceríamos de anos posteriores, esses robôs se igualam aos replicantes de Blade Runner e também aos anfitriões da série Westworld. Eles são o verdadeiro foco de discussão do autor desde o primeiro ato da peça, quando Helena, filha do presidente das fábricas que produzem os robôs e membro da Liga da Humanidade, chega ao escritório de Harry Domin (também chamado de Domain ao longo da obra), o gerente geral da R.U.R., para descobrir como as coisas funcionavam ali. Neste ato inicial, temos momentos incríveis de humor, especialmente com Helena confundindo humanos com robôs e vice-versa. Mas há algo ainda mais interessante aí, que é a “corrupção” das ideias da jovem, que vai à fábrica com o intuito de fazer vistoria, de garantir certos direitos aos robôs, mas acaba sendo majoritariamente desviada de sua missão, pois um pedido de casamento ganha destaque e o peso dessa luta por direitos é simplesmente diminuído.

Helena manterá até o fim da peça uma mentalidade infantilizada em relação aos robôs. Ela tem intenções moralmente nobres, mas por sua educação luxuosa e mimada, não sabe bem como lidar com os problemas que esse mundo da produção de robôs lhe apresenta. Em algumas cenas ela faz de tudo para garantir a vida e a dignidade de uma criatura e no outro está queimando documentos importantes para fugir com uns poucos escolhidos, deixando os robôs em revolução, destruindo a cidade ao seu bel prazer. A manipulação a que Helena é submetida não lhe tira o pensamento de simpatia em relação à outra espécie, mas ao mesmo tempo lhe impede de fazer qualquer coisa em larga escala, assim como ter voz ativa em qualquer decisão importante ou mesmo saber o que está acontecendo em seu país.

Aliás, há uma linha de abordagem crítica do autor em relação a isso, quando ele contrasta esse afastamento programado de Helena da realidade à forma como ela mesma resolve se afastar, se alienar, quando a empregada Nana começa a ler notícias terríveis da revolução dos robôs, que estão matando milhares de seres humanos mundo a fora. No terceiro, último e menos interessante ato da peça, esse comportamento é escancarado em definitivo, mas aí isso funciona para todos os personagens, que passam por uma retirada de máscaras, também mostrando suas contradições. O epílogo da obra coroa a tragédia: a humanidade é exterminada e só sobra um homem, que não comemora o fato de os robôs não saberem como se reproduzir — logo, o fim desses há de chegar progressivamente –, mas amarga uma espécie de parceria culpada com as criaturas.

Esse indivíduo reforça que é um “trabalhador manual” não um verdadeiro cientista. Sua relação estranha com os robôs faz com que ele chegue ao fim da vida encontrado um Adão e uma Eva robóticos, aparentemente revestidos de alma, já que encontraram o amor e a sensibilidade. Eu disse mais acima que há um tom melodramático aqui, e o terceiro ato + o epílogo demonstram isso com perfeição. Não é de se espantar que são as partes mais fracas e menos marcantes da peça. Por mais que tragam o clímax, fixem uma extinção e indiquem uma luz de esperança, esses dois momentos se desviam muitíssimo da ironia, humor e discussões verdadeiramente notáveis que trazem os dois primeiros atos.

A relação entre criadores e criaturas é colocada à prova em Robôs Universais de Rossum. Há até um momento em que os criadores tentam dividi-los ao fazê-los não Universais, mas locais, ou seja, robôs de uma região iriam odiar todos os outros robôs que não se parecessem com eles. Assim, a união seria impossível, logo, mais trabalhadores devotos aos humanos de cada localidade. Isso, porém, não impede que certos caprichos (quase) românticos interfiram nesse grande projeto de criação e gerem um inesperado apocalipse que termina mal para os humanos, como a gente já está tentado a esperar… e pelo visto, não é de hoje.

R.U.R. – Robôs Universais de Rossum (R.U.R. – Rossumovi Univerzální Roboti) — Checoslováquia, 1920
Autor: Karel Čapek
Edição lida para esta crítica: Dover Publications – Reprint edition (Março de 2014)
Tradução (inglês): Paul Selver, Nigel Playfair
67 páginas (Kindle)

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