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Crítica | Rabid (2019)

por Leonardo Campos
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É de se estranhar que numa era de tantas refilmagens, David Cronenberg tenha o seu legado praticamente intacto, comparado aos demais filmes icônicos dos anos 1970 e 1980 que ganharam releituras contemporâneas, algumas surpreendentes, outras decepcionantes. Rabid, lançado em 2019, retomou alguns pontos da cinematografia do cineasta, agora sob a direção de das realizadoras (irmãs) Jean e Sylvia Soska, dupla que consegue atualizar bem o clássico cult e impor traços de uma leitura mais feminina e atualizada da mídia, numa respeitosa abordagem de Enraivecida na Fúria do Sexo, body horror envolto em polêmicas quando lançado em 1977, produção com debate ainda muito atual sobre os impactos da ciência e da tecnologia na vida dos seres humanos, cada vez mais dependentes e supostamente manipulados por “algo maior”.

Também produzido em território canadense, Rabid foi dirigido com base no roteiro das diretoras, escrito em parceria com John Serge, grupo responsável pela narrativa de 107 minutos que comete os seus exageros na segunda metade, mudando bruscamente o estilo visual e pesando a mão fortemente na maquiagem, mas ainda assim, é uma experiência para ser considerada exitosa. Na trama, temos o foco na história de Rose (Laura Vandervoot), uma designer de moda que ocupará um posicionamento ativo nos desdobramentos da tragédia que acometerá a sua vida. Ela é repleta de complexos, haja vista o passado também trágico, marcado por um acidente que ceifou todos os seus familiares e a deixou “sozinha no mundo”. Da experiência ela guarda uma cicatriz, algo que não se aproxima das marcas que tomarão seu rosto mais adiante.

No trabalho, Rose vive numa redoma de estresse constante. Ela produz para o caricato e exigente Gunter (Mackenzie Gray), o dono da produtora que trata todas as pessoas como lixo e tem no constrangimento alheio, um de seus principais focos de lazer e diversão. Sádico, o famoso designer de moda quer ser reverenciado o tempo inteiro, tendo os seus funcionários como súditos alijados de qualquer cuidado que designe uma mentoria consciente da importância de ensinar os mais jovens que desejam seguir os seus passos. Parte relativamente nevrálgica da trama, Gunter exerce o papel de poder e também serve como crítica panorâmica aos fetiches e afetividades das pessoas envolvidas no campo da moda, um território que segundo o filme, é um espaço de disputas acirradas, maus-tratos, descuido com a saúde e a extrapolação dos limites psicológicos individuais em prol das necessidades dos consumidores, etc. Até então, nenhuma novidade.

Logo mais, Rose é convidada por Chelsea (Hannele Talbot) para acompanha-la numa festa que será ofertada por Gunter para celebridades locais e interessados no campo de trabalho de ambas, ela designer e a amiga, uma modelo. Ao chegar, Rose descobre que há um encontro forjado com Brad Hart (Benjamin Hollingsworth), um fotógrafo que a corteja, mas que ela não imagina ser algo a pedido da amiga, interessada em vê-la curtir um pouco mais a vida. Entre uma situação e outra, Rose segue para casa, mas antes de perfazer o seu caminho, sofre um tenebroso acidente com a sua moto. Sobrevive e depois dos primeiros tratamentos, descobre que o seu rosto está completamente desfigurado de um lado, numa visão que a faz se aproximar do que concebemos como grotesco. Como atuar num campo tão visual, agora que se transformou num “monstro” que sequer consegue olhar-se no espelho? É quando o filme dá a sua guinada.

Tal como esperamos, em especial, aos que conhecem a versão de 1977, a face apresentada ao público, criada pelo eficiente setor de maquiagem supervisionado por Steve Kostanski, será algo para pouco tempo. Depois de morar por alguns dias com Chelsea, a jovem designer abalada pelo acidente decide investir algum tempo num projeto com células-tronco que pode mudar os resultados plásticos da tragédia. Ela vai ao centro de atendimento, uma luxuosa instalação arquitetônica numa zona distante da cidade, para receber os cuidados do Dr. William Burroughs (Ted Atherton), cientista que dá continuidade ao que foi iniciado pelo Dr. Keloid (Stephen McHattie). O uso de tecido artificial para a reconstrução resolve o problema, inclusive o da cicatriz do acidente anterior, memória mais distante de Rose. O problema é que diferente do que fora imaginado previamente, os efeitos colaterais aparecem e um rastro de sangue e morte se estabelece, numa mescla de situações com vampirismo e corpos cadavéricos contagiosos.

Inicialmente, o médico que a acompanha lhe pede que adote uma dieta líquida, mas com o passar do tempo, os efeitos no corpo de Rose ainda exaltam a sua beleza, agora revigorada, mas a faz carregar dentro de si algo contagioso que além de fazê-la comer carne crua e beber sangue como parte de sua alimentação diária, também promove um rastro de contágio com todos os contatos sexuais da moça, sedenta também por se relacionar com os homens, algo que não era parte de sua “identidade” anterior. Com várias menções ao cinema de Cronenberg e promovedor de reflexões sobre violência, mídia e a fútil cultura das celebridades, Rabid investe no body horror menos intensa que a abordagem do cineasta canadense inspirador para a produção, mas ainda assim, tem os seus momentos de transmutação dos corpos e derramamento de sangue. É, no geral, uma produção competente e que respeita o legado cult do antecessor refilmado.

Das paletas limpas dos momentos diurnos, com paletas acinzentadas em alguns trechos, aos constantes trechos em ambientes noturnos, a direção de fotografia de Kim Derko cumpre bem a sua função narrativa, dando ao filme a atmosfera soturna necessária para magnetizar o seu espectador, com momentos inquietantes de lacerações, ossos fraturados e mastigações, ressaltados pelo design de som de Danielle McPride e uma trilha sonora pop e urbana, composta por Claude Foisy, também eficiente na missão de reinventar o clima de Enraivecida na Fúria do Sexo para as gerações mais atuais. Peter Mihaichuk também faz um trabalho bem digno no design de produção, dando volume aos espaços por onde transitam os personagens que pertencem ao mundo praticamente “neon” e alienado desta narrativa sobre a relação da humanidade com a ciência e a tecnologia, junção promovedora de uma devastadora trilha de contágio e morte que vista na atual era da covid-19, ganha ainda mais conteúdo para debates.

Rabid — Canadá, 2019
Direção: Jean Soska, Sylvia Soska
Roteiro: John Serge, Jean Soska, Sylvia Soska, David Cronenberg
Elenco: Laura Vandervoort, Benjamin Hollingsworth, Ted Atherton , Hanneke Talbot, Mackenzie Gray, Stephen McHattie, Phil Brooks, AJ Mendez, Kevin Hanchard, Greg Bryk
Duração: 107 min.

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