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Crítica | Rashomon (1950)

por Luiz Santiago
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Rashomon (1950) é um daqueles filmes que conseguiram ser lançados por um golpe de sorte e que por maior sorte ainda, conseguiram alcançar, em seu tempo, o reconhecimento que mereciam. Realizado no mesmo ano que O EscândaloRashomon sobreviveu a três grandes incêndios antes de sua finalização e teve duas redublagens, além de duas gravações para a trilha sonora, a última delas, feita às pressas para a distribuição internacional da fita. O filme encantou a representante da Italiafilm, que resolveu inscrevê-lo no 12º Festival de Cinema de Veneza, mesmo sem consultar Kurosawa. Todavia, isso não foi um problema. Rashomon sairia do Festival com o Leão de Ouro e ainda receberia uma indicação ao Oscar de Direção de Arte em Preto e Branco e um Oscar Honorário em 1953. A obra foi o trampolim para Akira Kurosawa prosseguir com sua carreira e, sobre ela, o próprio mestre já se pronunciava: fui poupado de ser deixado de lado.

Todo esse afã, no entanto, não é gratuito. Rashomon é sem dúvida uma das grandes obras do cinema e um marco inquestionável na filmografia de Akira Kurosawa. O título é um dos mais lembrados do cinema japonês dos anos 1950, especialmente porque sua popularidade trouxe à produção nipônica uma lufada de ânimo e abertura garantida para o mercado Ocidental, espaço que Kurosawa saberia aproveitar muitíssimo bem.

O roteiro do longa é resultado da primeira parceria de Kurosawa com Shinobu Hashimoto, um colaborador que voltaria a trabalhar com o mestre em ViverOs Sete SamuraisAnatomia do Medo e Trono Manchado de Sangue. O argumento, por sua vez, vem da literatura. Inicialmente, o texto era uma adaptação do conto No Matagal (1922), do escritor Rynosuke Akutagawa. O conto relata a morte de um samurai e o estupro de sua esposa por um bandido. Não há narrador no conto, apenas os depoimentos do lenhador, de um monge, da mulher, do bandido e do morto (através de uma médium) a um Inquiridor.

A história ainda precisava de algo que a sustentasse melhor, uma linha narrativa menos aberta, por isso o conto Rashomon (1915), do mesmo autor, foi adicionado ao roteiro, ligado de uma forma bastante interessante aos acontecimentos principais. O mix entre as duas produções ganhou uma forma narrativa complexa, sendo a história central vista no presente — enquanto três transeuntes esperam uma forte chuva passar, protegendo-se embaixo do portal de Rashomon, na entrada de Kyoto. A história apresentada nos leva para os depoimentos dados ao Inquiridor, ou seja, um flashback que, por sua vez, nos leva a um outro flashback, mostrando acontecimentos dentro do matagal, segundo a versão de cada um dos depoentes.

O trabalho dos roteiristas em cima da obra literária é bastante eficaz. A essência dos contos é mantida e as modificações são estruturalmente necessárias, principalmente porque agregam muito à visão de Kurosawa sobre a índole humana e o aflorar dos sentimentos nas mais diversas situações. Talvez, no desfecho da película, o roteiro tenha posto um ponto final em algo que ainda não cabia um ponto. Não digo que o término seja insatisfatório, mas a passagem de um assunto para outro, o aparecimento do bebê e o resgate da fé na humanidade não deveriam ter vindo na mesma sequência de acontecimentos. A sensação de que algo faltou para melhor ligar essas partes está presente em todas as vezes que revejo o filme, embora goste muitíssimo dele e do modo como termina — mesmo que, como já disse, sinta a falta de ‘alguma coisa’.

Como diretor, Kurosawa não deixou de ousar. A dublagem da médium com a voz do morto, a orientação para a equipe de montagem e para a épica música de Fumio Hayasaka cercam o filme com um poder e uma leveza tremendos. Essa sensação fica mais forte com a direção de atores, que mostra personagens psicologicamente diferentes e uma postura bufona que tende à perturbação, no caso do bandido Tajômaru, muitíssimo bem interpretado por Toshiro Mifune. Em cada um dos lugares e tempos em que vemos ações acontecerem, percebemos uma nuance dramática distinta, o que comprova a eficiente direção de Kurosawa e como o diretor tinha o cuidado de fazer esses espaços se ligarem em um movimento contínuo, dando-nos a impressão de que tudo é um fluxo incessante de ideias e eventos, seja em uma visão real (a linha do tempo dos personagens) ou em uma visão simbólica/natural (a alternância pontualíssima entre sol, vento e chuva).

Rashomon é um filme sobre verdade e mentira, sobre a memória e a veracidade de acontecimentos recentes; sobre várias versões para uma mesma história. Particularmente tenho ressalvas para algumas coreografias de luta e mesmo para o que acontece após o último enfrentamento vindo na segunda versão da história do lenhador, mas isso não é nada comparado à grandeza da fita, portanto, não diminuem a importância que vejo na obra e muito menos a sua qualidade. Rashomon é um dos filmes essenciais para qualquer cinéfilo e foi uma belíssima catapulta de mercado para Akira Kurosawa.

Rashomon (Japão, 1950)
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto (baseado no conto de Rynosuke Akutagawa).
Elenco: Toshirô Mifune, Machiko Kyô, Masayuki Mori, Takashi Shimura, Minoru Chiaki, Kichijirô Ueda, Noriko Honma, Daisuke Katô
Duração: 88 min.

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