Crítica | Ray

por Gabriel Carvalho
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“Hit the road Jack and don’t you come back
No more, no more, no more, no more”

Algumas cinebiografias deram espaço para que atores se transformassem e mostrassem uma capacidade interpretativa – ou então imitativa – gigantesca. O recém-vitorioso Gary Oldman, em O Destino de Uma Nação, é uma prova disso. No caso, temos uma medida de comparação – a verdadeira figura de Winston Churchill. Por tal, se a clonagem cinematográfica é perfeita, a performance de um ator é impulsionada. Em algumas pontuações, a base pré-existente torna o trabalho de construção de atores, em específico relativo aos maneirismos determinados pela história, limitado. O ator deve ser aquilo e fim. Porém, há potencial – o próprio Oldman deu um show de interpretação. A começar uma comparação, deixem de lado a maquiagem pesada. Ela também está presente em Ray, mas de uma forma muitíssimo mais leve, contornando uma atuação deslumbrante. Jamie Foxx é Ray Charles e, se em aparência o resultado é formidável, em fisicalidade também temos uma cópia do comportamento real de Ray, um dos maiores músicos americanos. Ao seu lado, Jamie Foxx não tem a possibilidade de trabalhar os olhos, visto que Charles era cego, mas, mesmo assim, os entornos da face dizem muito do que há de ser expressado pelo ator. No que nunca foi exibido ao público, o íntimo do personagem, o espetáculo é ainda maior.

Contando uma considerável parte da carreira de Ray e deixando clara toda a influência do músico para a sua arte, Taylor Hackfrod e James L. White fazem um interessante trabalho de reconstituição histórica no roteiro, aliados com uma belo encaixe do figurino e da direção de arte. Há uma passagem de tempo sendo bem construída, algo difícil de ser feito com clareza em cinebiografias que recontam longos períodos. A única problemática que surge dentro de tudo isso é o papel das mulheres na vida de Ray, visto que, ora ou outra, namoradas e esposas que aparentemente eram importantes, somem da trama sem explicações. Quando justificativas existem para o sumiço, não se é muito bem-vinda a pretensão de construção feita. Della Bea (Kerry Washington) não tem um papel bem manejado pelo roteiro, apesar da atriz se sair bem com a interpretação. O melhor de tudo, no entanto, é a ausência de uma santificação monstruosa ao protagonista. Ray Charles, neste filme, é um homem falho, dependente químico, interessadíssimo em dinheiro e, acima de tudo, um mulherengo moralmente questionável. Nada se é explorado com perfeição, mas é apreciável uma tentativa de humanização que, apesar disso, não nos impede de simpatizar com a personalidade. Ademais, as aparições de Quincy Jones (Larenz Tate) são easter-eggs aleatórios que apenas ocupam tempo de tela.

Por falar em tempo de tela, Ray é um filme consideravelmente longo, embora charmoso o suficiente para nos encantar sonoramente. A questão musical é, dessa forma, uma maravilha audiovisual. As músicas não são meras composições feitas para preencher lacunas da carreira musical de Ray, mas realmente servem para contar história e ganham significado na medida que o lançamento de algumas delas são notáveis como essenciais para o crescimento do músico dentro da indústria fonográfica. O pretexto dado para Hit the Road Jack é eficiente dentro da narrativa, por exemplo. A busca constante de Ray Charles por inovar, saindo a todo momento de sua zona de conforto, também traz conflitos instigantes. Dentro do âmbito visual, o diretor Taylor Hackfrod imprime uma dinamicidade impressionante, aliado a uma exímia montagem que consegue brincar com a música na forma de imagens. O mesmo pode ser dito sobre a montagem na hora de intercalar os flashbacks com o enredo. Infelizmente, dentro destes, há muito pouco capaz de nos fazer relacionar honestamente com o personagem – acaba caindo para o melancólico. A morte de seu irmão, apesar de verdadeiramente perturbadora, não recebe o devido impacto. A compensar, as cenas de Ray com a sua mãe (Sharon Warren) são realmente bem feitas, tratando de introduzir-nos a um universo totalmente novo, um universo completamente escuro.

Ao cair por essa linha mais pedinte, que exige lágrimas do espectador, os flashbacks acabam criando uma mística pouco crível. Os episódios de alucinação são os únicos apoios para o relacionamento do passado com o presente, mas eles não funcionam. Existem sequências boas, como a de Aretha vendo o seu filho cego lhe chamar, resistindo ao sofrimento dele com o intuito de ensiná-lo, porém, falta coesão com a linha principal. O exagero na licença poética do filme também é crítico, porque, no fim, acaba por manipular exageradamente os nossos sentimentos e pior do que soarem falsos, serem falsos. Como biografia, apesar de existir a necessidade de adaptações para objetivos estéticos, é imprescindível a conformidade com a verdade, da mesma forma que documentários não podem sair por aí transmitindo mentiras como se fossem verdades. Curiosamente, esta não é uma produção que abusa muito de saídas típicas para glorificar o seu protagonista. Um contraponto para essa abordagem mais certeira seria o desserviço feito em Fruitvale Station: A Última Parada. O trabalho de Jamie Foxx já oferece muito de uma honestidade sobre quem essa figura era quando viva, enquanto cantarolava alegremente para o mundo. Há muita verdade em Ray que o verdadeiro Ray Charles, morto meses antes da estreia do longa-metragem em decorrência de uma doença, iria gostar de assistir nas grandes telas.

Ray – EUA, 2004
Direção: Taylor Hackford
Roteiro: Taylor Hackford, James L. White
Elenco: Jamie Foxx, C. J. Sanders, Sharon Warren, Kerry Washington, Regina King, Renee Wilson, Larenz Tate, Harry Lennix, Clifton Powell, Curtis Armstrong, Richard Schiff, Kurt Fuller, Richard A. Smith, Patrick Bauchau, Terrence Howard, Chris Thomas King, Wendell Pierce
Duração: 152 min.

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