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Crítica | Regra 34 (2022)

Quem é responsável por determinar o que é dor e quem é responsável por determinar aquilo que é prazer?

por Michel Gutwilen
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Jogar luz ao termo “regra 34”, que dá título ao novo filme de Julia Murat, parece um bom ponto de partida, uma vez que o próprio não é explicado dentro de sua experiência (nenhum filme tem essa obrigação, é claro), precisando de um conhecimento externo para isso. Gíria popular, regra 34 seria como um brocardo romano da era da internet, que afirma que se algo existe, há uma versão pornô sua em algum canto virtual. Ou seja, tudo que originariamente não é não-erótico no mundo real ganha uma espécie de duplo pornô no cyberespaço. É por conta e risco do leitor: vá no Google Imagens, jogue o nome de um personagem famoso da ficção e digite ao lado rule 34. Se fosse possível fazer uma analogia entre psicologia e tecnologia, a regra 34 é praticamente a constatação de que a internet é o Id do mundo real (por sua vez, o Ego), em que é possível dar vazão às pulsões humanas que não encontram espaço na realidade. 

Pois bem, como este conceito se relaciona com a história do filme de Julia Murat? O objeto de sua regra 34 seria justamente a violência, que encontra seu duplo do mundo real numa versão pornográfica. Por uma narrativa habitada em dois mundos aparentemente inconciliáveis, temos uma protagonista que vive uma vida dupla, noturnamente vivendo uma vida de performancer sexual de práticas sadomasoquistas em chats obscuros da internet e, de dia, a de defensora pública que convive com a defesa de minorias oprimidas. Assim, Regra 34 concentra-se neste exercício que é como um lento rompimento de uma barragem que separa um mundo e outro, no qual as discussões sobre violência no cotidiano de Simone (Sol Miranda) vão inundando sua outra vida, trazendo a política para o espaço sexual. Por mais que Simone acredite que o seu universo BDSM é hermético e alienado de sua vida real, sua amiga mais experiente na área (vivida por Isabela Mariotto) alerta que um está inserido no outro e essa permutação parece chave em Regra 34

Muitos filmes recorrem ao espaço narrativo de uma sala de aula porque esse cenário obviamente dá uma chance aos realizadores de colocar na boca de seus personagens os temas centrais de sua história, o que pode ser por vezes um atalho bem óbvio, mas no caso de Regra 34 essa escolha acaba fazendo um certo sentido porque existe um movimento de passagem do campo teórico acadêmico para sua aplicação empírica no universo estranho do mundo sexual que é essencial à provocação de Murat. A prática complementa a tese e vice-versa, o que é verbal se personifica carnalmente. 

Por um lado da dialética, há muitas cenas verbalizadas nas salas de aula, mesas de bar e relatos de mulheres abusadas, que, juntas, formam um panorama de discussão sobre opressão e violência contra corpos oprimidos e vão sufocando Simone, que se encontra em um lugar de imobilidade e passividade diante do problema estrutural do mundo. Se há muitas cenas de dor física no filme, de igual potência são aquelas em que vemos o contraplano da protagonista sofrendo ao escutar os relatos das mulheres assediadas na Defensoria, quase como se víssemos a atriz Sol Miranda absorver a dor do outro como sua. Escutar sobre a violência alheia o dia todo cansa a alma.

Por outro lado, as contradições instigantes de Regra 34 passam a surgir quando Simone pratica a violência contra si dentro do contexto sexual. Sua situação se mostra como uma espécie de Síndrome de Estocolmo estrutural em que, para deixar de ser agente passiva da violência estrutural da sociedade, o mecanismo que seu cérebro cria para escapar dela e se colocar no controle é se ela mesmo for agente ativa contra si mesma, ressignificando a opressão da violência em em um tipo de prazer misturado com liberdade do empoderamento.

Contudo, se Simone vê com mais certeza a liberdade de sua relação a violência, a grande sacada de Regra 34 pode ser que para o público essa dinâmica ganhe contornos mais cinzentos, como se pudéssemos ver as armadilhas que a própria protagonista não é capaz de enxergar. Como o espectador reage, por exemplo, ao escutar o sensível monólogo da personagem vivida por MC Carol narrando a violência doméstica de seu marido e, momentos depois, ao ver o parceiro de Simone, dentro do consentimento do BDSM, a agredindo na cama? Até que ponto a violência é aceitável aos olhos? Fala-se muito do consentimento da protagonista consigo, mas há uma tentativa de teste com os limites do próprio consentimento do espectador, que se torna seu cúmplice. Não há como despolitizar a identidade da protagonista neste sentido: até que ponto, nós, espectadores, aguentamos ver um corpo negro e feminino sendo agredido, mesmo que por ele mesmo? Mesmo que a atuação de Sol Miranda de fato nos faça acreditar que há uma grande libertação em todos aqueles gestos, será que o poder simbólico das imagens desse corpo não fala mais alto?  

Por isso, Murat vai experimentando com a dialética do choque entre esses dois mundos, sempre apostando no poder dos cortes de uma cena para outra, que através de seus gritantes contrastes, vão fazendo essa passagem da violência-sofrimento da vida de Defensoria para a violência-prazer do BDSM, mas chega um momento do filme que as barreiras entre as pulsões de morte e tesão se confundem demais. Quando vemos Simone se autoasfixiando embaixo da pia, e neste momento da trama já fomos bombardeados de diversas discussões políticas do filme, enxergamos aquilo como um ato de liberdade mesmo, tal como a personagem, ou mais uma falsa liberdade que a leva novamente para uma perpetuação de gestos de violência? Como a própria defende em um teste atuando em seu papel de defensora pública, surpreendendo a todos, não há como culpabilizar cem por cento o homem periférico que bate em sua mulher porque seus gestos fazem parte de um ciclo vicioso no qual ele via seu pai cometer agressões também. Seguramente, Simone também está falando de si.  

São esses tipos de contradições que o filme de Murat vão gerando, sem soar totalizante ou impositivo dentro de uma visão sobre o tema, na medida em que deixam um espaço para o espectador fazer um trabalho ativo de reflexão sobre essas imagens, já que o ponto de vista de sua protagonista não necessariamente é confiável. Porém, por uma outra perspectiva, fica-se levemente com a impressão de que nem o filme sabe exatamente ao nível discursivo o que esses choques vão provocar e qual resposta quer, como se fosse ele uma busca tateante por alguma faísca que se revele ao acaso. 

Inclusive, como há espaços interpretativos demais, talvez esse texto revele mais minha filiação a um ponto de vista sobre o que é apresentado, do que a própria certeza do que é o filme. Talvez meu texto seja mais cínico com relação à liberdade de Simone no BDSM, talvez outro acredite 100% que ela está liberta ali. É um filme que nos faz nos posicionar, nesse sentido. Ainda assim, mesmo que Murat não saiba exatamente fechar todas as portas que abre e nem para quais cômodos elas abrem, o gesto do filme em abrí-las parece mais valoroso de se guardar nesta provocação de Regra 34, mesmo sendo um processo imperfeito, buscando lugares incomuns de imagens e discussões sobre violência, prazer e identidade — não à toa premiado pelo juri em Locarno 2022, tal como Titane em Cannes 2021, dois filmes minimamente similares e simpaticamente imperfeitos em suas provocações, porque ao invés de serem assertivos, se encontram mais interessados em evidenciar todos os curtos-circuitos da contemporaneidade, entendendo que se a violência faz parte da existência desses corpos, é preciso encontrar uma resposta através dela para inverter os sistemas de opressão.

Regra 34 (2022) — Brasil, França
Direção: Julia Murat
Roteiro: Julia Murat, Gabriela Capello, Rafael Lessa, Roberto Winter
Elenco: Sol Miranda, Lorena Comparato, Lucas Andrade, Isabela Mariotto, Samuel Toledo, Marina Merlino, Danielle Ornelas, Julia Bernat, Simone Mazzer, Lucas Gouvêa, Babu Santana, MC Carol
Duração: 100 mins

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