Instigante e diferenciado. Retorno de Ulisses, de Paula Mastroberti, propõe uma instigante releitura contemporânea da Odisseia de Homero, deslocando o foco da épica masculina do herói para a voz feminina de Penélope. Ao integrar texto e imagem em um mesmo gesto narrativo, a autora cria uma obra híbrida, que transita entre literatura, arte visual e experimentação gráfica. Mais do que revisitar o mito, Mastroberti o “reverte”, como sugere o título da série em que se inclui, desafiando a narrativa tradicional que consagrou Ulisses como protagonista absoluto e concedendo protagonismo à mulher que esperou, bordou e silenciou por séculos.
A proposta de Mastroberti é profundamente metaficcional e autorreferencial. Ao declarar que “dessa vez, resolvi não criar os personagens principais do livro a partir da minha imaginação, mas trabalhar em cima de pessoas de verdade”, a autora dissolve as fronteiras entre ficção e realidade, entre mito e cotidiano. As figuras de Ulisses, Penélope e demais personagens ganham rostos concretos, os de amigos, colaboradores e conhecidos da artista, o que humaniza o mito e o aproxima do leitor. As fotografias caseiras, reeditadas e transformadas em imagens poéticas, rompem com a idealização dos heróis homéricos e inserem a narrativa no território da intimidade e da memória. É um trabalho de quem conhece profundamente de literatura, o que não significa, por sua vez, que sua leitura seja fascinante. Achei, em várias passagens, tão fragmentado que o acompanhamento lembra nossa atual dinâmica das redes sociais com texto, algo que pode soar cansativo para momentos diletantes. Fiquei, neste caso, com o olhar mais acadêmico mesmo.
O recurso de conceber o livro como um álbum de família reforça essa dimensão afetiva e subjetiva. As notas, rasuras e manchas de tinta funcionam como vestígios de uma presença viva: a de Penélope, que agora se torna não apenas personagem, mas autora e narradora de si mesma. Ao transformar Penélope em uma artista plástica, Mastroberti subverte o gesto do tecer, símbolo de espera e passividade, em ato criador e libertador. O tear mítico se converte em tela, em colagem, em pintura; o fio, em imagem; e o silêncio, em discurso visual. Trata-se de uma reversão simbólica e política, na qual a mulher deixa de ser objeto de narração para tornar-se sujeito da própria história.
Nesse contexto, Retorno de Ulisses não é apenas uma adaptação moderna da Odisseia, mas um comentário crítico sobre o próprio fazer artístico e literário. A autora questiona as hierarquias entre arte e vida, mito e realidade, palavra e imagem. A narrativa visual em primeira pessoa criada por Mastroberti transforma o retorno de Ulisses em uma jornada de Penélope, uma busca pela reconstrução de si por meio da arte. Assim, a obra celebra a potência criadora da mulher e afirma o direito de recontar os mitos por intermédio de curiosas e novas perspectivas, mostrando que cada retorno também pode ser uma reversão: um gesto de resistência, memória e reinvenção.
Em linhas gerais, a série Reversões, criada por Paula Mastroberti, busca ressignificar clássicos da literatura universal através de uma lente pós-moderna que aborda questões contemporâneas, como identidades e relações sociais. Neste terceiro título da coleção, intitulado Retorno de Ulisses, revisita a grandiosa Odisseia, focando na temática do “regresso” de Ulisses à sua terra natal, Ítaca. No entanto, a narrativa é modernizada para refletir a fragmentação da família na atualidade, com Estéfano, inspirado no personagem Stephen de Ulysses, em busca de seu pai. A mãe, Penélope, une em sua figura conturbada as representações femininas da obra original, enquanto se expressa como artista plástica ao inaugurar uma nova exposição.
Mastroberti utiliza a busca de Estéfano para explorar a resiliência da família como núcleo de estabilidade e afeto em um mundo caótico. O álbum de imagens que acompanha o texto, repleto de memórias rasgadas e fragmentadas, simboliza a dor da ausência e a luta de Penélope para lidar com a fuga de Ulisses. Ao retratar esses elementos, a autora proporciona uma reflexão sobre a relação entre tradição e ruptura no contexto pós-moderno, oferecendo ao leitor uma narrativa envolvente e crítica. O trabalho de Mastroberti, já premiado em sua obra anterior Heroísmo de Quixote, se reafirma como um presente valioso ao leitor contemporâneo, instigando questionamentos profundos sobre a família, a identidade e o sentido do pertencimento na sociedade atual. No geral, um trabalho riquíssimo para debater linguagens, mas cansativo para o leitor que, tal como quem escreve, esperava uma narrativa um pouco menos “caótica”.
Retorno de Ulisses (Brasil, 2007)
Autoria: Paula Mastroberti
Editora: Rocco
Páginas: 120
