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Crítica | Ruído Branco (2022)

O supermercado de nossa existência.

por Ritter Fan
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Ainda não li o livro homônimo de Don DeLillo que serviu de base para o mais recente longa-metragem de Noah Baumbach, mas dizem por aí que ele se tratava de uma daquelas obras classificadas como inadaptáveis para o audiovisual. A julgar pelo filme, creio que consigo entender o porquê, mas diria que, mesmo com alguma dificuldade – que, diria, é perfeitamente compreensível dada a natureza do material original – o cineasta novayorkino entregou uma obra inegavelmente interessante e instigadora que, não tenho dúvida alguma, polarizará opiniões assim como História de um Casamento polarizou, ainda que com menos intensidade.

Muitas sinopses ressaltam o “evento tóxico aéreo” que marca determinado segmento do filme como algo definidor, mas Ruído Branco não é de forma alguma sobre isso – que, claro, cria imediatos paralelos com a ainda não encerrada pandemia que vivemos – ou mesmo que tenha esse aspecto como o mais importante da obra, ainda que ele sirva de catalisador para outras situações, claro. Para mim (ressalto esse aspecto, pois o filme permite diversas leituras), o que Baumbach deseja passar com sua comédia de tons nada discretos de Teatro do Absurdo e que é temporal e estilisticamente situada na década de 80 é algo muito mais prosaico e poderoso, que poderia ser talvez definido como a luta cotidiana para manter a coesão de uma família.

Adam Driver vive Jack Gladney, um renomado professor de “Estudos sobre Hitler”, cátedra que ele mesmo criou e é o maior expoente do assunto mesmo sem saber falar uma palavra de alemão. Greta Gerwig vive Babette, a quarta esposa de Jack, uma mulher de exterior alegre, mas que secretamente se automedica com uma droga experimental. Entre eles, há quatro filhos, dois de Jack de casamentos anteriores, um de Babette de casamento anterior e um dos dois que, juntos, criam uma maravilhosamente enervante cacofonia de vozes pela casa que, na abordagem propositalmente exagerada e quase fantasiosa de Baumbach, espelham um microcosmo que não é sequer tão incomum assim. Esse núcleo familiar – especialmente a relação de Jack com Babette – é o centro das atenções da câmera do cineasta, com toda a engenharia visual e narrativa ao redor, incluindo as aulas de Jack, a angústia secreta de Babette, a tentativa do professor Murray Siskind (Don Cheadle) em fazer como Jack e criar sua própria cátedra, só que sobre Elvis Presley, e, claro, a nuvem tóxica que leva a narrativa ao seu único momento de ação propriamente dito, não sendo mais do que corpos celestes que gravitam ao redor desse núcleo, impulsionando, juntando-o e também separando-o.

Entre o consumismo americano exacerbado representado pelo colorido supermercado que é um dos principais cenários do longa – uma belíssima e não coincidentemente andersoniana sucessão de vibrantes corredores construídos em estúdio que são palcos de muitos diálogos e de um final bollywoodiano extremamente satisfatório -, o conflito existencial de Jack por ser basicamente o único representante de sua especialidade (ou seja, não há paralelos e, sem paralelos, ele inexiste na comparação) e o de Babette por ter um medo irracional que ela precisa contrabalançar com remédios (novamente o consumismo, só que de outra forma), passando por talvez a melhor sequência do longa em que Murray e Jack fazem uma improvável palestra dupla, um sobre Elvis e o outro sobre Hitler, como em um dueto musical, tudo em Ruído Branco é uma exteriorização propositalmente exagerada e estereotipada da vida comum (claro que nesse recorte socioeconômico específico dos EUA). A crítica satírica está em cada elemento caracterizador dos personagens, seja um professor que, em sua abordagem sobre Hitler, chega próximo – mas muito próximo mesmo – de exaltá-lo (como Murray obviamente exalta Elvis Presley a ponto de traçar diversos paralelos completamente tirados da cartola com o próprio Hitler), seja seu filho mais velho Heinrich (Sam Nivola) demonstrando um nível de paranoia com a nuvem tóxica que o transforma em um expert no assunto que, porém, sempre fica em segundo plano (ciência para que?), seja com Babette e sua fragmentação sóbria na medida em que a história progride.

Mas o longa não funcionaria sem que Adam Driver e Greta Gerwig, mas especialmente Driver com seu cabelo ralo e sua barriga de chope, se entregassem à proposta. Ninguém deve esperar atuações dramáticas clássicas aqui, até porque o longa é, essência, uma comédia. Mas meu ponto é que os dois atores encarnam o exagero e se vestem dele em cada palavra e gesto. Não há uma linha de diálogo que saia da boca do Jack de Driver que não pareça uma palestra de um professor particularmente empolado diante de alunos que fazem de tudo, menos prestar atenção. Não há um movimento de Gerwig que não deixe transparecer – em retrospecto, bem antes de o espectador saber de seu problema – alguém que tinha, mas que não mais tem aquele joie de vivre. Até mesmo o Murray de Cheadle parece um conspirador que fala aos sussurros sobre os assuntos mais prosaicos, aproveitando para soltar aquelas frases de efeito que são tiradas diretamente de livros de autoajuda.

Aos que prestaram atenção, eu disse, bem no começo de minha crítica, que Baumbach teve dificuldades com o filme ou, provavelmente, com a obra que ele adaptou e sua principal dificuldade parece ter sido a de manter Ruído Branco como um longa apenas. Eu não me surpreenderia, por exemplo, se a obra, apresentada como um longa-metragem, tivesse sido lançada como uma minissérie de três, talvez quatro episódios, pois é isso que os 136 minutos de duração fazem parecer: uma minissérie costurada como filme. Mais do que em seus outros filmes, Baumbach segue o caminho de deslumbramento audiovisual que seu colega Wes Anderson domou tão bem ao longo de sua carreira. Claro que Baumbach pende ao caos, enquanto Anderson é a encarnação da ordem, mas, se vistos com distância suficiente, os dois cineastas carregam estilos semelhantes tratando da vida como ela é da maneira menos “como ela é” possível, mas jamais perdendo o tom. No entanto, Ruído Branco não tem um tom apenas, mas sim vários e o caos narrativo traduz-se no caos visual que fratura a infraestrutura narrativa e transforma um longa em três ou quatro curtas, cada um com sua história, cada um com sua temática que só começa verdadeiramente a ganhar coesão nos quase surreais 20 ou 25 minutos finais, a partir do momento em que Jack decide agir por contra própria, fazendo valer o princípio da Arma de Tchekhov.

E essa fragmentação narrativa torna Ruído Branco uma obra que provavelmente exige mais do espectador do que ele está disposto a dedicar a ela (e digo isso por experiência própria). De forma alguma, porém, falo de complexidade narrativa que tornaria a obra hermética, mas sim do bom e velho tempo mesmo, pois, por vezes, o filme parece não andar ou, quando anda, caminha lentamente dependendo de solilóquios – mesmo os diálogos são solilóquios aqui, vale dizer – para sobreviver. Nesse aspecto, ele não é lá muito diferente da obra anterior do cineasta, mas, lá, a impressão de coesão narrativa era evidente e muito bem trabalhada. Aqui, ela se perde em capítulos que não conduzem naturalmente a história de um para o outro, sempre exigindo algo como uma reorganização mental a cada nova situação.

Mesmo assim, Noah Baumbach cria mais uma obra fascinante em sua carreira de diretor e roteirista. Ver Adam Driver e Greta Gerwig completamente soltos nessa fábula absurdista materializada visualmente como uma cápsula de tempo que é aberta hoje somente para descobrirmos que nada mudou, é um deleite da mesma forma que é uma agonia. Ver um supermercado funcionar como a representação de todo um estilo de vida – e não, não é só o americano! – e mesmo assim ficar fascinado com o literal balé cenográfico das sequências nesse lugar que poderia facilmente ser opressivo, não tem preço. Não tenho ideia se o filme é uma adaptação próxima da obra de DeLillo ou se tem no romance apenas uma inspiração longínqua, mas, sendo uma coisa ou outra, a única certeza que tive ao final – e quem não assistir aos créditos todos não merece mais ver filmes! – foi que eu agora preciso ler esse livro.

Ruído Branco (White Noise – EUA/Reino Unido, 30 de dezembro de 2022)
Direção: Noah Baumbach
Roteiro: Noah Baumbach (baseado em romance de Don DeLillo)
Elenco: Adam Driver, Greta Gerwig, Don Cheadle, Raffey Cassidy, Sam Nivola, May Nivola, Jodie Turner-Smith, André Benjamin, Sam Gold, Carlos Jacott, Lars Eidinger, Bill Camp, Barbara Sukowa, Francis Jue, Henry Moore, Dean Moore, Gideon Glick, Chloe Fineman, Kenneth Lonergan
Duração: 136 min.

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