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Crítica | Saga – Volume Oito

Vamos conversar sobre aborto?

por Ritter Fan
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  • Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais volumes.

Um dos aspectos mais impressionantes de Saga é que Brian K. Vaughan e Fiona Staples parecem ter um plano muito bem detalhado sobre todo o seu épico sci-fi, do começo ao fim, mas sem em momento algum deixar de surpreender pela maneira como a dupla aborda os assuntos. O oitavo encadernado da HQ reúne as edições 43 a 48, com as quatro primeiras contendo um arco uno que continua a partir do cliffhanger do volume anterior e as duas últimas sendo basicamente one-shots dedicados a personagens fora do eixo principal, mas que servem de pontas a serem exploradas futuramente, marcando a primeira vez em que os autores recorrem a esse artificio comum em outras publicações.

No trágico final do arco anterior, Alana perde seu bebê e o natural seria começar o arco seguinte com uma elipse que “resolvesse” fora das páginas essa questão difícil de lidar em qualquer circunstância. Mas fazer o natural não é especialidade de Vaughan e Staples e, muito ao contrário do que se poderia esperar, eles usam essa oportunidade para dedicar uma história inteira à experiência de se ter filhos e, mais ainda, de se ter a escolha de não tê-los. Não é sem querer que, para provocar e chocar, a primeira página da edição #43 é uma arte de página inteira em que vemos a inscrição “Bem-vindos à Cidade do Aborto!”, com uma coruja-xerife-médica celebrando a chegada de Alana, ainda com a barriga enorme e o ex-Príncipe Robo IV fingindo-se ser um casal – já que o planeta é aliado à Aterro – para justamente fazer o que o nome da cidade promete, considerando que o feto morreu.

Independente de que lado o leitor seja no interminável debate sobre o aborto, creio ser impossível não ficar perplexo com a recepção visual do começo desse arco, que exige até alguns segundos extras para ajustes, especialmente porque toda a atmosfera emula descaradamente o Velho Oeste, o que altera radicalmente a ambientação normalmente sci-fi da série, inclusive com figurinos de época para completar o mergulho. Essa escolha da “fronteira americana” para caracterizar o planeta Pervious é genial, pois centraliza o debate no ambiente conservador que conhecemos, ao mesmo tempo em que deixa bem claro que, se alguém está ali nessa planeta, ou é para abortar ou para ser quem faz o aborto. Mas, claro, que esse é apenas o começo das agruras do grupo, já que, em razão do avançado da gravidez de Alana (oito meses), o atendimento médico é recusado e ela precisa recorrer a médicos que vivem exercendo sua profissão ilegalmente no deserto profundo.

Mas mesmo isso não é tão simples, pois a grande jogada de mestre do arco é mesmo fazer com que o feto morto no ventre de Alana mágica e temporariamente passe seus poderes a ela e acabe resultando em uma magia premonitória involuntária que, em resumo, faz com que uma versão jovem de seu filho morto apareça para a trinca. A presença de Kurti (afinal, a mãe do suricato havia pedido que Alana batizasse seu filho com o nome do filho dela) é dolorosa e torna a história incrivelmente melancólica e lindíssima, com Vaughan e Staples ainda conseguindo inserir um pouco de atmosfera de terror de fronteira quando eles chegam na casa da médica aborteira que nada mais é do que uma loba com as mãos ensanguentadas.

Ver Hazel criar conexão com Kurti é de partir o coração, pois fica claro que a situação é efêmera e que a menina perderá o irmão novamente, mesmo que essa oportunidade de os dois se conhecerem não tenha preço. Há todo um ritmo narrativo que Vaughan imprime nessa história que faz o  relacionamento brevíssimo entre irmãos ser capaz de arrancar aquela lágrima furtiva dos olhos dos mais durões. Mesmo com a iminência do desaparecimento de Kurti, aquelas horas são claramente preciosas à cada vez mais madura Hazel, que tanto já perdeu e sofreu em seus poucos anos de vida. Paralelamente, vemos uma conexão amorosa muito interessante ser estabelecida entre ninguém menos do que Petrichor e IV, em mais uma demonstração muito clara do planejamento cuidadoso da dupla criativa (se o leitor lembrar das imagens que apareciam no visor de IV, fica bem claro que ele no mínimo é bissexual, pelo que seu envolvimento com Petrichor encaixa-se perfeitamente na narrativa).

Encerrado então o “arco de faroeste”, as duas edições finais, a primeira abordando o aprisionamento de O Querer pela diplomata vingativa Iantha que quer acabar com tudo que o caçador de recompensas ama, o que significa que Gwendolyn está sem sua mira e, a segunda, lidando com Ghüs, Squire e o casal de jornalistas no planeta sem nome basicamente passando fome e tendo que fazer de tudo para conseguir comida, o que pode significar matar e cozinhar a coitada da morsa da pequena foca branca antropomórfica, vêm para criar os ganchos que permitem a continuidade da história macro. Tenho para mim que os autores não precisavam ter recorrido a essa mudança radical de ambientação e de passo, com o uso de dois one-shots marcadamente separados do restante, talvez permitindo idas e vindas narrativas para as histórias paralelas que precisavam contar.

Não me levem a mal, pois são duas edições excelentes, especialmente a que conta a “origem” de O Querer, mas, como parte de um encadernado e considerando os que vieram antes, elas parecem separadas demais do todo para funcionar como deveriam ter funcionado. Claro, o leitor já fica salivando para saber o que acontecerá, especialmente considerando que Alana, Marko e companhia chegam, ao final, paramentados com figurinos do Japão feudal sem a menor explicação e com Hazel já voando, algo que deixa claro que houve uma elipse temporal de algum significado, mas diria que teria sido bem mais interessante se Vaughan e Staples tivessem usado as seis edições disponíveis para distribuir melhor essas histórias finais.

Seja como for, o Volume Oito de Saga é mais um primor da Nona Arte que merece figurar muito facilmente no panteão das melhores HQs mensais já feitas (e digo isso com tranquilidade sem nem o épico ter acabado). O volume seguinte, como muitos sabem, marca o momento em que os  criadores entraram em um longuíssimo sabático de sua obra por mais de três anos, prometendo retornar no final de janeiro de 2022 para encerrar o épico com mais alguns volumes que prometem muito.

Saga – Volume Oito (Saga – Volume Eight – EUA, 2017)
Contendo:
 Saga #43 a 48
Roteiro: Brian K. Vaughan
Arte: Fiona Staples
Letras: Fonografiks
Editora (nos EUA): Image Comics
Data original de publicação: maio a outubro de 2017
Editora (no Brasil): Editora Devir
Data de publicação no Brasil: junho de 2019
Páginas: 152

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