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Crítica | Saint Maud

por Iann Jeliel
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O mais interessante nos filmes de terror assertivos da A24 é como eles ressignificam dramas por meio de recursos estéticos remetentes ao cinema de horror. No caso, Saint Maud tinha tudo para ser um drama “comum” sobre obsessão dogmática religiosa, mas se torna único quando escolhe uma condução atmosférica típica de um filme de terror, que dá vitrine àquela obsessão pelo ponto de vista já assustadoramente engolido da personagem por sua fantasia própria. Em nenhum momento a cineasta estreante Rose Glass esconde que os pensamentos da protagonista (Morfydd Clark, ótima!) são alheios ao ambiente onde ela vive, ou seja, o medo do desconhecido ou a possibilidade de mistura entre o real e o lúdico não é uma pauta, o que torna o caráter psicológico da construção do terror algo fora do convencional, mesmo dentro de sua especificação “psicológica”.

Apesar das origens de suas perturbações serem um mistério desvendado ao longo da projeção, a ameaça que elas trazem nunca é uma dúvida ou sugestão que possa existir na realidade palpável do filme. Então, o terror realmente está dentro daquela mente, sem ambiguidades, e o que causará medo são as ações que essa mente pode trazer para fora e aplicar na realidade. Num primeiro momento, iremos temer o que desencadeará a tentativa do processo de conversão de sua paciente particular, Amanda (Jennifer Ehle). Boa parte do filme se passa em apenas um ambiente com as duas interagindo, em uma construção bem prática dessa relação, do status profissional, até ser um pouco mais íntima, o que dá abertura para a personagem tentar convidá-la a fazer parte de sua crença. Movimento esse feito antes do filme realmente iniciar seu conflito, quando Maud descobre que Amanda também se relaciona com mulheres.

A partir daí, a intimidade simpática dá lugar a uma troca sutil de hostilidades, o que desencadeia uma série de eventos que vão evidenciar claramente – com ajuda da ótima montagem – a distorção da realidade provocada pela solidão de uma personagem esquecida pelo ambiente ao seu redor e que cria um ideal em sua mente para preservar seu propósito dogmático. Contudo, ao contrário do que parecia, o filme não ganha um status alegórico mais forte após a entrada desses conflitos socioculturais, pelo contrário, ele se mantém firme no estudo de personagem, tanto que se desvia do foco na história em determinado momento, porque precisa perseguir a protagonista para onde ela for. Embora Glass nunca deixe de mão o roteiro visual na leitura crítica sobre cada ação de sua personagem, sempre de modo a complementar e dar motivação à nova etapa de sua jornada de espirais de devaneios de especialidade.

Das leituras mais interessantes, a que mais chama a atenção é a indicação quase automática do negacionismo cristão ao prazer feminino. Se existe alguma ameaça sobrenatural no filme, é a tentação sexual à espreita a todo momento. Não à toa, e ironicamente, os momentos da “presença” de Deus em seu corpo são filmados como se gerassem orgasmos na personagem, ao invés de transmitir a pureza que ela tanto busca em seu pensamento fundamentalista. Basicamente, a reprodução de pecado no filme passa por esse viés carnal, que se analisado no prisma da figura da mulher em sociedade, é demonizado sem nem precisar crer em princípios religiosos radicais, como o próprio filme demonstra mais para a frente ter sido um dos motivos que fez Maud buscar a santificação. Se isso por si só não é uma ironia suficiente, há outros pontos de leitura ótimos levantados, como a metodologia autodestrutiva catolicista do discurso de “perdão”, que prega tanto a limpeza da alma que impossibilita uma autocrítica da mente. Tanto que a protagonista se vê dividida após uma virada do roteiro, a lavagem cerebral daquele processo só encaminha essa divisão para um novo patamar de insanidade.

E o bom é que o filme acompanha esse raciocínio e começa a se abrir ainda mais para elementos fantasiosos, porque àquela altura existe mais chance de discernimento em Maud, só dando ainda pequenas pitadinhas no cenário verossimilhante para não deixar dúvidas de que está tudo em sua cabeça. O clímax em particular é sensacional, com direito a um dos melhores jumpscares dos últimos anos e um final imageticamente angustiante como exercício de gênero, além de correspondente à linha de raciocínio crítica mencionada sobre os “orgasmos divinos” – melhor forma possível de fechar o longa. De certa forma, Saint Maud é uma antítese progressiva às ideias levantadas pelo grande expoente da A24 no terror (e creio eu que principal referência para existir), A Bruxa de 2015, partindo de conflitos por conta da extrema religiosidade dos personagens para encaminhar a sua autodestruição pelo medo social da libertação feminina.

Saint Maud (Saint Maud | Reino Unido da Grã-Bretanha – Irlanda do Norte, 2019)
Direção: Rose Glass
Roteiro: Rose Glass
Elenco: Morfydd Clark, Jennifer Ehle, Lily Knight, Lily Frazer, Turlough Convery, Rosie Sansom, Marcus Hutton, Carl Prekopp, Noa Bodner
Duração: 84 minutos

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