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Crítica | Sandman: Prelúdios e Noturnos

por Luiz Santiago
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Vamos combinar que o Sandman de Neil Gaiman é uma das séries e personagens em mais alta conta no mundo dos quadrinhos, bem falada até por quem não leu a obra (mentir que leu Sandman é o equivalente da 9ª Arte para o Ulysses, de James Joyce, na 6ª Arte). Como resultado, muita gente chega a classificar a saga como “superestimada” justamente pela grande fama, pelos superlativos de classificação e por ela supostamente ser um dos critérios essenciais para se conseguir a carteirinha de nerd nível hard. Bobagem. Se seguirmos esse raciocínio, vamos dizer que tudo o que é muito bom e aplaudido recebe tal atenção unicamente porque “inventaram que deveria ser aplaudido”. Isso pode ser verdade para alguns papa-hypes, mas, pense bem, se uma obra chegou a este nível de discussão e problematização, ela precisa ter, no mínimo, um valor histórico inestimável para uma determinada arte. E isso o Sandman de Neil Gaiman tem de sobra. Mas estamos nos adiantando aqui. Vamos começar do começo.

Para efeito de classificação, vai aqui um pequeno informativo sobre a bagunça DC.

A revista Sandman de Neil Gaiman é originalmente classificada como Sandman Vol.2 na DC Comics/Vertigo. A revista Sandman Vol.1 foi publicada entre 1974 e 1975, capitaneada por Joe Simon, Jack Kirby e Mike Royer, apresentando Garrett Sanford como Sandman. Este volume contou com apenas 6 edições.

Já a revista Sandman Vol.3 foi publicada entre 1993 e 1999, com o subtítulo Teatro do Mistério. Ela foi capitaneada por Matt Wagner e Guy Davis e, em estilo de literatura pulp, apresentava as aventuras do Sandman da Era de Ouro, Wesley Dodds, além da Sociedade da Justiça em algumas edições. Este volume contou com 70 edições.

Todas as outras publicações relacionadas a Sandman, além dessas, foram feitas em outros títulos (antologias, revistas de super-heróis ou grupos, especialmente na Era de Ouro e Prata) ou em spin-offs.


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O Começo: Vigília

Estados Unidos, 1987. O Editor Executivo da DC Comics, Dick Giordano, mais os editores Art Young, Karen Berger e uma porção de outras figuras importantes na Casa das Sombras naquele momento, estavam reunidos para definir os rumos que as publicações deveriam tomar naquele final de década; que outras coisas interessantes poderiam fazer; que novas séries, novos personagens, novas histórias poderiam contar. Algumas apostas foram feitas. Mudanças estavam para ocorrer na linha de publicações da DC.

Capas das edições #1 a 4, construídas por Dave McKean.

Capas das edições #1 a 4, construídas por Dave McKean.

Reino Unido, setembro de 1987. Neil Gaiman recebeu um telefone da editora Karen Berger (que estava editando o seu Orquídea Negra), perguntando se ele não tinha interesse em escrever uma série mensal para a DC. Gaiman fez algumas propostas, mas todas foram rejeitadas pela editora. Ele então trouxe à tona um personagem de uma antiga conversa que tivera com Berger: Sandman. A versão da Era de Prata. A editora gostou da ideia, mas não para os Sandmans já conhecidos. Ela pediu um outro Sandman. Algo que os leitores nunca tinham visto.

Em 29 de novembro de 1988, um ano e pouco depois, a primeira edição de Sandman estava à venda nas bancas (com capa datada de janeiro de 1989).
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O Começo: Sonho

Sandman é um personagem antigo da DC Comics. Sua origem exata é meio controversa. Algumas fontes apontam para a revista New York World’s Fair Comics #1 (data de capa: abril de 1939) e a segunda, mais comumente aceita, a revista Adventure Comics #40 (data de capa: julho de 1939). Em ambas as tramas temos roteiro de Gardner Fox e desenhos de Bert Christman, os criadores do Sandman da Era de Ouro, cujo nome era Wesley Dodds (que faz um cameo aqui, em O Sono dos Justos), conhecido por utilizar chapéu Fedora, máscara de gás e uma arma com sedativo com a qual colocava os criminosos para dormir. Dodds foi um dos membros originais da Sociedade da Justiça e morreu em ato heroico.

O Sandman da Era de Prata, ou Sandman II foi uma reformulação feita por Joe Simon e Jack Kirby (com outras edições escritas por Michael Fleisher). Aqui, o personagem era Garrett Sanford, que tinha Bruto e Glob como ajudantes (citados em Anfitriões Imperfeitos). Sanford eventualmente enlouquece, ao ser exposto à solidão da Dimensão dos Sonhos e acaba cometendo suicídio.

Da esquerda para a direita, os Sandmans da origem até Neil Gaiman:

Sandmans da Era de Ouro, Prata, Bronze e Moderna: Wesley Dodds, Garrett Sanford, Hector Hall, Morpheus

A explicação para o Sandman da Era de Bronze, ou Sandman III (Hector Hall, filho do Gavião Negro e da Mulher-Gavião da Era de Ouro), criado por Roy Thomas na Infinity Inc. #48, é melhor compreendida se tomarmos como ponto de visão o Sandman da Era Moderna ou Sandman IV (Morpheus/Sonho, de Neil Gaiman). Quando o Sonho foi preso, em 1916, Bruto e Glob começaram a fazer “experimentos” para substituir o lugar do seu Mestre desaparecido. Assim, nessa fase de “experimentos”, assumiram o manto Garrett Sanford e o fantasma de Hector Hall, que antes de morrer era o Escaravelho de Prata. Seu espírito foi incorporado no mundo do Sonhar e ele se tornou o Sandman III. Futuramente, Sonho o devolveu à Morte, mas, como seus pais, ele reencarnou e assumiu, no futuro, o elmo do Senhor Destino original.

Ah, e só para dizer que não falamos do sidekick: Sandy, the Golden Boy estreou juntamente com a segunda versão do Sandman de Wesley Dodds, em Adventure Comics #69. Depois o teríamos como Sand (Sandy Hawkins), na versão da SJA em 1999, e como Sandman, na versão da mesma equipe em 2007.

Com tanto material prévio para considerar, era natural que Gaiman tivesse dificuldades iniciais em justapor versões e criar algo coerente em um novo Universo, algo que respeitasse os outros personagens e fizesse sentido dentro da DC Comics, algo que ele conseguiu fazer de forma quase perfeita, mas um pouco… solta… um claro e perdoável deslize de autor que embarcava pela primeira vez uma série mensal. Ele próprio disse que Prelúdios e Noturnos, arco que compreende as 8 primeiras edições da série, é “desajeitado”.
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A Outra Parte

Neil Gaiman não queria escrever uma história de super-herói. Seu Sandman deveria estar além do bem e do mal, não deveria estar alinhado, em nenhuma camada, a moralidades ou ética humanas, um Perpétuo feito de matéria dos sonhos que existia pelo menos desde que o Universo surgiu e que estaria no Universo até quando sua última luz brilhasse. Como não há a indicação dos outros Perpétuos neste início de saga — apenas a Morte aparece em O Som de Suas Asas, edição de fechamento do arco — todo o foco do roteiro está em Sonho; também chamado de Oneiros, Lorde Moldador, Senhor dos Sonhos, Príncipe das Histórias, Vossa Escuridão, Lorde Kai’Ckul (chamado assim por sua ex-amante, Nada, quando ele visita o inferno) e L’Zoril, que começa a travessia completamente desafortunado, caindo na armadilha do mago Roderick Burgess, da Ordem dos Antigos Mistérios, cuja intenção inicial era capturar a Morte.

Contemplem esta diagramação e se emocionem.

Contemplem esta diagramação, arte e cores e se emocionem.

Estamos em 6 de junho de 1916 e o mundo atravessa a Primeira Guerra Mundial. A escolha do momento histórico não poderia ser mais propícia. Com o primeiro grande conflito de alcance intercontinental do século XX, é de se imaginar que sonhos de um futuro brilhante tenham sido roubados de milhares de pessoas e entregues à Morte. As que estavam vivas, na Europa, a ‘casa’ do conflito, ou em outros lugares do mundo, dividiam-se entre as otimistas, que viam um futuro positivo com o fim iminente do conflito, sempre sonhando com dias melhores; e as negativas, que não viam mais a razão na existência: se o homem chegara àquele ponto, não seria muito bom estar vivo para ver o futuro.

Percebam que, com estes milhares de sonhos problemáticos ocorrendo ao mesmo tempo e mais outros tantos sonhos perdidos, concebidos dormindo ou em forma de vigília (o famoso “sonhar acordado”, que também pode vir como “sonho de vida”), Morpheus se viu confuso, sobrecarregado e talvez tenha sido ingênuo demais, acabando em uma armadilha que nem ele, nem o leitor conseguem classificar muito bem quanto ao seu resultado. Afinal, os 72 anos de aprisionamento do Perpétuo, que certamente serviu para torná-lo mais reflexivo, talvez mais compassivo e questionador de si mesmo, foi uma coisa boa para os humanos, para aqueles que sonham? Ele podia esperar ali até a última pedra da mansão virar pó que não faria diferença para ele. Mas imaginem a angústia de um Senhor do Reino dos Sonhos ser privado de seus objetos reais e de seu poder por um capricho místico de um mago ressentido com o famoso ocultista Aleister Crowley.

Aos poucos, o roteiro de Gaiman passa de uma abordagem unicamente lírica para um texto de ordem poética, dando novos significados a palavras e ações ou utilizando coisas do mundo real como ponte para o mundo dos sonhos, obtendo resultados em cada um deles e também em sua síntese, que basicamente começa a aparecer a partir da segunda edição do arco, Anfitriões Imperfeitos.

Caim e Abel ouvindo Gregory, o Dragão-Gárgula, bater na porta para entregar um alquebrado Sandman.

Caim e Abel ouvindo Gregory, o Dragão-Gárgula, bater na porta para entregar um alquebrado Sandman.

Se na primeira edição temos uma soberba narrativa cronológica que passa por lugares como EUA, Canadá, Inglaterra, França, Jamaica e inúmeras referências à cultura pop, teorias da conspiração, cultura ficcional e à História do século XX, de obras como A Coisa, de Stephen King, o Livro Místico de Madalena e o Liber Paginarum Fulvarum até personalidades como Marilyn Monroe, John Wayne, Elvis Presley e Humphrey Bogart, na segunda edição, chegamos a um pequeno inventário do Universo dos Sonhos, começando por ninguém menos que Caim e Abel.

Neil Gaiman nunca fez segredo de que era fã do trabalho de Alan Moore na Saga do Monstro do Pântano e que havia um punhado de histórias do mago naquela revista que ele gostava demasiadamente e que serviu de grande inspiração para a construção do Universo de Sandman, especialmente em Prelúdios e Noturnos e A Casa de Bonecas. O leitor vai encontrar aqui referências de diversos níveis aos enredos e criações de Moore para o Pantanoso, principalmente nas histórias abaixo.

  1. Outro Mundo Verde — como possibilidades de um Universo que integra o “mundo humano” e que sequer notamos;
  2. Descida Entre os Mortos — com aplicação direta na edição Uma Esperança no Inferno, quando Sonho vai em busca de seu Elmo e onde vemos Lucifer Morningstar/Samael pela primeira vez na saga (lembrando que já haviam outras aparições estereotipadas de Lucifer no Universo DC), com aparência de David Bowie e conceitualmente inspirado no poema Paraíso Perdido, de John Milton.
  3. Abandonadas Casas — especialmente pela presença de Caim e Abel);
  4. Rito de Primavera — dada a inimaginável representação do sexo e da libido, algo que também seria visto em Amor Alienígena, outra história de forte influência sobre Gaiman;
  5. Gótico Americano — pela narrativa entre misticismo, terror e temas do mundo contemporâneo;
  6. Fim — eventos que justificam a existência do recém-criado Triunvirato do Inferno, formado por Lucifer, Belzebu e Azazel;
  7. O Parlamento das Árvores, Jardim das Delícias Terrenas, Meu Paraíso Azul, e Toda Carne é Erva, todas elas inspirações para que Gaiman desenvolvesse o Universo dos Perpétuos, sua hierarquia, interação com o Universo dos humanos, comportamentos pessoais e desastres particulares ou refigurações possíveis de suas próprias existências.
Sandman vai ao inferno.

Sandman vai ao inferno.

Quando vemos Caim e Abel, presenciamos não só uma exposição com identidade própria para os personagens (Gaiman é a maior prova de que inspiração não precisa ser cópia), mas também uma ponte entre Sandman e o funcionamento do mundo dos Sonhos, suas proximidades e particularidades. O roteiro mescla horror, religião, misticismo, fantasia, surrealismo, dadaísmo e páginas e páginas de literatura psicanalítica (notadamente freudiana e junguiana), representadas nas casas que cada um dos malfadados irmãos dominam: a Casa dos Segredos, morada de Abel e a Casa dos Mistérios, morada de Caim.

A introdução da Hécate (Donzela, Mãe Suprema e Velha Encarquilhada, mas não só, também podem ser a representação das Bruxas de Macbeth, lembrando que Shakespeare sempre foi um norte narrativo para Gaiman; o quadro As Três Idades da Mulher, de Gustav Klimt, ou qualquer outra tríade feminina, boa ou má) serve como caminhos iniciais para a investigação de Sonho, momento a partir do qual o leitor consegue perceber a autocrítica que o próprio Gaiman fez ao seu trabalho, o tal “desajeito” na forma de construir a história.

No começo, os desencontros textuais são poucos, quase imperceptíveis, dados como um grande número de informação pouco processada em pequeno prazo. À medida que as edições avançam, e principalmente quando chegamos em Passageiros, Som e Fúria e O Som de Suas Asas, vemos que o roteiro não se completa totalmente, tropeça um pouco no entrelaçamento dos personagens e nos dá ligações levemente frágeis entre as edições. Lembrando que, na minha leitura, isso só acontece nas revistas citadas, mas a diferença do tom narrativo é tão grande, que acaba afetando a qualidade do todo, daí explico a minha subtração de meia estrela na avaliação final para o arco, que mesmo assim, é excelente.

Mas há um lado extremamente exigente em Prelúdios e Noturnos, onde se destacam três bárbaras edições, a primeira e já analisada O Sono dos Justos e as igualmente ótimas Sonhe Um Breve Sonho Comigo e 24 Horas. Neste ponto, gostaria de começar pela arte de Sam Kieth, que assina os desenhos das 5 primeiras edições.

Sonho e sua irmã Morte.

Sonho e sua irmã Morte.

A primeira consideração a se fazer é a forma primorosa como o artista diagrama suas páginas. O leitor fica em tremenda expectativa para o que virá a seguir, que tipo de borda, de imagem ou integração de espaços seriam feitas e como seriam feitas. O artista utiliza artes decorativas (plásticas e arquitetônicas) como Art Nouveau, Art Déco e Mosaico para criar diferentes plataformas em cada cena. Seu trabalho no princípio de O Sono dos Justos é o maior exemplo disso. Em Sonhe Um Breve Sonho Comigo (onde Gaiman dá uma aula de como guiar um roteiro a partir de material externo, nesse caso, as canções Dream a Little Dream of Me; Mister Sandman; I Heard Through the Grapevine; Sweet Dreams of You; Sweet Dreams; Dream Lover; Power of Love; e In Dreams) ele fez alguns experimentos com colagens misturadas aos desenhos, processo que seria melhor explorado por Mike Dringenberg da edição #6 em diante, realizando, em sua despedida, um verdadeiro pesadelo através da arte.

Já na edição 24 Horas, temos a estreia de Mike Dringenberg nos desenhos (até então ele havia arte-finalizado o lápis de Sam Kieth), com um trabalho anatômico e de diagramação bem inferiores aos de seu antecessor, porém, com um estilo mais sombrio, mais sujo — intensificado pela finalização de Malcolm Jones III –, que torna os personagens, especialmente Morpheus, mais ameaçadores. Dringenberg diagrama suas páginas com quadros nulos, destacando o preto e o branco, e ousa pouco no contorno e interação entre esses quadros (embora 24 Horas e Som e Fúria tenham ótimas firulas nos enquadramentos). Sua arte nos dá a impressão de um mundo mais doente, mais “simples e ranhento”, algo que, a meu ver, faz todo sentido na abordagem dada pelo roteiro.

Em 24 Horas, Gaiman acompanha o Doutor Destino (John Dee), internado no Asilo Arkham pela Liga da Justiça, com o rubi que pertencia a Morpheus, realizando uma jornada de ódio e domínio da humanidade através do sonho, uma trama realmente assustadora, onde todos revelam partes de suas personalidades escondidas (ou são forçados a revelá-las) e terminam mortos, dado o extremismo com que isso acontece. Ao lado de O Sono dos Justos e Uma Esperança no Inferno, esta completa a minha tríade de números favoritos em Prelúdios e Noturnos.

Capas das edições #5 a 8, construídas por Dave McKean.

Capas das edições #5 a 8, construídas por Dave McKean.

O primeiro arco de Sandman é uma viagem por diversas culturas, mitos, religiões e personagens clássicos dos quadrinhos, da Era de Ouro à primeira fase da Era Moderna. Neil Gaiman dava início a uma travessia entre os sonhos e a realidade, criando um Sandman que é o Sonho antropomorfizado e justificando a existência dele em relação aos Sandmans II e III, especialmente ao terceiro, que ainda estava “por aí”, algo que seria melhor explorado pelo autor nos arcos seguintes. Terminando com um encontro bastante revelador entre irmãos (Sonho e Morte) e um final entendimento de Morpheus para a atual fase de seu existir, ele nos deixa voando em devaneios, entregues aos braços daquele pálido Ser de cabelos desgrenhados com sua algibeira cheia da eterna areia de doces e de tenebrosos sonhos.

Sandman #1 a 8: Prelúdios e Noturnos (The Sandman Vol.2 #1 – 8: Preludes & Nocturnes) — EUA, janeiro a agosto de 1989.
Roteiro: Neil Gaiman
Arte: Sam Kieth (#1 a 5) e Mike Dringenberg (#6 a 8)
Arte-final: Mike Dringenberg (#1 a 4), Malcolm Jones III (#5 a 8) — agradecimento especial a Don Carola na edição #6.
Cores: Robbie Busch
Letras: Todd Klein
Capas: Dave McKean
240 páginas

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