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Crítica | Sandman: A Casa de Bonecas

Quem está no controle?

por Luiz Santiago
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Um dos grandes debates filosóficos e existenciais existentes até hoje se dá frente ao conceito de controle da própria vida e das próprias escolhas. O homem tende a rejeitar a ideia de que não tem controle sobre si mesmo, de que sua vida é um caminho pré-determinado e de que nada do que ele faça pode mudar isso (na cultura pop, Matrix tornou essa discussão bastante conhecida). Afinal, a razão, o mito do livre-arbítrio e a própria ânsia humana por controlar tudo o que está ao seu redor; a vontade de ter respostas para tudo e para colocar rótulo em tudo costumam dar a sensação de que temos liberdade e de que essa liberdade é conquistada e exercida a duras penas. Quem nos poda é a sociedade, são as leis, a obrigação que temos de respeitar determinados limites. Ou não seria nada disso? Em A Casa de Bonecas, Neil Gaiman foca exclusivamente nas ações humanas e não-humanas, nas atitudes de diferentes manifestações vivas e no quanto essas atitudes são reações, impulsos ou sugestões vindas de entidades mais fortes, de acontecimentos misteriosos e sobrenaturais sobre os quais ninguém tem controle. A existência, sob esse ponto de vista, ocorre como uma brincadeira numa casa de bonecas.

A primeira história desse arco é uma narrativa aparentemente autocontida, chamada Contos na Areia (Tales in the Sand). E digo “aparentemente” porque Gaiman não dá ponto sem nó. Ao longo dessas edições veremos pelo menos três marcantes referências a situações mostradas em Prelúdios e Noturnos (a prisão da rainha Nada no Inferno; o estupro de Unity Kincaid por Desejo; e a morte de Judy por John Dee, o Dr. Destino, no massacre da lanchonete). A primeira edição, que parece completamente isolada, liga-se simbolicamente àquilo que temos na última, numa resolução de caso que não me agradou muito, mas que não deixa de ter o seu peso dentro da própria história e até uma notável camada de trágico lirismo naquilo que representa. Nesta aventura inicial, o autor nos entrega uma encarnação diferente de Sonho, sob a perspectiva cultural de algum lugar do continente africano. Aqui, Sonho recebe o nome de Kai’ckul, e é o belo homem pelo qual a rainha Nada se apaixona perdidamente, até descobrir que ele era um Perpétuo e que o amor entre os dois só poderia trazer desgraças para o povo, para o mundo.

O fato de ser um “conto de formação” narrado por um velho a um jovem que acaba de “tornar-se um homem” diz muito sobre essa narrativa. É um olhar para aquilo que o desejo não controlado pode trazer à vida de alguém, mesmo que esse desejo receba a nomenclatura de “amor”. Tanto o ponto de vista de Nada quando o ponto de vista de Kai’ckul mostram uma vontade imensa, mas a mulher que encarna o eterno vazio consegue refrear isso, enquanto o responsável por um reino a que temos acesso apenas no momento mais frágil de nosso dia, quer realizar suas vontades a todo custo. O fato de ser uma narrativa oral e ter a marca do griô (superficialmente, “o contador de histórias“, em algumas culturas africanas) faz de Contos na Areia uma abertura ideal para um arco de Sandman, um convite para a entrada num reino de ilusões através de um conto sobre maturidade, desejo, reconhecimento de limites e a fatalidade por cruzar determinadas linhas… tendo até a possibilidade de uma variação do que acontece a partir de quem narra. Esta, claro, é a versão do homem, aliada à impetuosidade de Kai’ckul. Fica-nos a imensa curiosidade de saber como seria a história das mulheres, a partir do ponto de vista da rainha Nada. 

A partir da edição #10 (The Doll’s House) começa a narrativa ligada àquilo que dá o título a este arco, sendo a ideia da “casa de bonecas” uma complexa projeção do real, símbolo que o autor utiliza para separar o “mundo verdadeiro” (o estado de vigília) do mundo dos sonhos. Em termos de andamento geral para a série, temos aqui a continuação da “limpeza da casa” e da colocação das coisas nos eixos por Morpheus, após o seu longo período aprisionado. A organicidade com que isso é colocado nas páginas do quadrinho é espantosa. O leitor tem a sensação de tempo corrente no mundo do Sonhar, captura a atmosfera de passagem incomum do tempo e, por isso mesmo, lida bem com os problemas que pouco a pouco vão aparecendo para Sonho, tanto os que foram iniciados no seu período de ausência, quanto os problemas que normalmente vão acontecendo em diversos reinos dominados, controlados ou visitados pelos Perpétuos. Aliás, por falar em Perpétuos, temos a primeira aparição nominal de mais dois deles aqui, Desejo e Desespero.

Um dos pontos mais interessantes desse pequeno bloco de histórias é a trama que envolve a jovem Rose Walker (apelidada de Rosebud, por sua mãe), que é inicialmente identificada como sendo um Vórtice, uma força inicialmente não explicada por Sonho, mas que a gente entende que é algo incomum e, por isso mesmo, o protagonista precisa ficar de olho nela. Ao final do arco, entendemos o poder destruidor desse tipo de manifestação: a unificação de todos os sonhos e a consequente morte de todos os sonhadores. A maneira intricada como todo o conceito de Casa de Bonecas foi sendo construído e como esses elementos tiveram impacto na resolução do “problema da vez” é digno de aplausos. Na edição seguinte, Mudanças (Moving In), muitas coisas acabam ganhando forma e se mostram como sementes para frutos futuros da série. Vemos surgir o peso da instituição familiar e Rose começa a sua busca pelo irmão Jed, que é apresentado sonhando situações à la Little Nemo in Slumberland ou In the Land of Wonderful Dreams, do grande Winsor McCay.

Os quatro desenhistas do arco (Mike Dringenberg, Chris Bachalo, Michael Zulli e Sam Kieth) fazem um trabalho fenomenal na criação de uma identidade para cada história narrada. O arco inteiro é composto por tramas que se entrelaçam com o momento presente (ou seja, os perrengues de Sandman para arrumar o Reino dos Sonhos) ou que sustentam um enigma interessante por si só e que futuramente gerariam fantásticas histórias, como o caso de Homens de Boa Fortuna (#13: Men of Good Fortune), onde conhecemos Robert “Hob” Gadling, o homem que não queria morrer e se tornou amigo de Sonho. Nesta edição, também aparecem Geoffrey Chaucer, Christopher Marlowe (com citações à Trágica História do Doutor Fausto) e William Shakespeare. Com este último, Sonho faz um trato, mas não conhecemos, no presente momento, os termos do acordo. Em cada uma dessas realidades, seja no mundo sonhos, na Convenção dos Cereais (piadinha de pai, mas que funciona muitíssimo bem), ou em cenas comuns do cotidiano, a arte de A Casa de Bonecas cria uma marcante identidade visual, da diagramação à representação, completada por um exigente e bem explorado trabalho de letramento na construção estética do quadrinho, aqui concebido por Todd Klein e John Costanza.

Morpheus é um Perpétuo transformado. Depois dos acontecimentos de Prelúdios e Noturnos, temos diversas indicações de que ele está se comportando de maneira diferente, sendo mais humilde e assumindo de forma quase neurótica as suas responsabilidades. Isso não significa estar certo ou ser compassivo o tempo inteiro, basta analisar a relação dele com a Vórtice e entender a sua decisão sobre o que fazer com ela. Ainda assim, Morpheus se mostra consternado por “ter que fazer aquilo que precisa fazer… porque este é o seu trabalho“. Notem que mesmo depois de uma grande mudança comportamental que o deixou menos arrogante, o personagem ainda guarda um senso de dever meticuloso e que muitas vezes não contempla nenhuma linha do que consideramos humanidade, mas isso não quer dizer que ele cumpre essa tarefa com gosto ou de maneira impulsiva.

Ele dá a oportunidade de Rose se despedir, é confrontado com uma possibilidade de troca no sacrifício (aliás, esta é uma marca interessante na literatura de Neil Gaiman, que está disposto a revisar o destino e deixar alguma felicidade, não sem algum tipo de amargor), assume que não entende de imediato o que está acontecendo (o entendimento vem depois, quando percebe que Rose é uma parente dele, neta de uma mulher estuprada pelo Perpétuo Desejo) e permite a reintegração amigável do Verde do Violinista (um “lugar de sonho” que escapou do Reino e, em sua forma humana, assumiu a figura do grande escritor G.K. Chesterton, mais conhecido por suas histórias de detetive protagonizadas pelo Padre Brown) ao Sonhar. Em contraste, mais cedo na trama, vemos o dever de Sonho agir de forma bastante dura, primeiro exterminando um pesadelo que ele mesmo criou para mostrar o lado obscuro das personalidades humanas: o Coríntio. Depois, fazendo com que os assassinos seriais acordassem de seus sonhos de grandeza e percebessem que não eram heróis em suas próprias narrativas distorcidas. Eles não eram absolutamente nada. 

Ter controle sobre um reino, readaptar-se à realidade e coordenar problemas que surgiram num período de vaga administração é o foco do personagem aqui, mas esse resumo simples não dá conta da profundidade e densidade com que o autor explora todas essas questões, em tudo deixando algo para que o leitor pense e faça ligações com lugares, pessoas e situações ao longo de toda a narrativa. Poderia aqui citar o corvo Matthew (referência a Edgar Allan Poe e seu icônico poema O Corvo, e que posteriormente ganharia um acréscimo, também referenciando o personagem de Peter Lorre no filme O Corvo, dirigido por Roger Corman); a aristocrata Johanna Constantine (uma ancestral do icônico personagem criado por Alan Moore e Steve Bissette na Monstro do Pântano #37); e Bruto, Glob e o “outro Sandman”, que representa um lado da jornada de Morpheus nessa nova fase, questão inicialmente tocada no primeiro arco da série mas que é definitivamente finalizada aqui.

Quando o Sonho foi preso, em 1916, Bruto e Glob começaram a fazer “experimentos” para substituir o lugar do seu Mestre desaparecido — mas também tinham uma intenção pessoal: queriam ter a liberdade de gerar seus próprios pesadelos nas pessoas. Assim, nessa fase de “experimentos”, dois indivíduos influenciados por essa dupla de pesadelos assumiram o manto do Sandman: Garrett Sanford (que enlouqueceu ao ser exposto à solidão da Dimensão dos Sonhos, e acabou cometendo suicídio) e o fantasma de Hector Hall, cujo espírito foi incorporado ao Sonhar e ele se tornou o Sandman III. Tudo isso é explicado em detalhes aqui, mais uma vez, complementando de modo bem pensado as informações deixadas em aberto no arco anterior. E vemos finalizada a questão em uma batalha do verdadeiro Senhor do Sonhar contra um “impostor”. A sequência é engraçada e ao mesmo tempo assustadora pela forma como Sonho se aproxima de suas criaturas, buscando uma espécie de vingança/punição pelo que fizeram, e pela forma como lida em definitivo com o “Sonho impostor”.

Voltamos às perguntas iniciais. Quem está no controle da vida, enquanto estamos acordados? E quem está no controle dos sonhos, enquanto dormimos? A Casa de Bonecas reflete sobre essas duas dimensões, sobre a forma como não sabemos realmente a nossa identidade, sobre como muitos mistérios sobre nós revelam-se apenas em determinada idade e sobre a própria existência, com seus sentidos e significados ocultos ou muitíssimo particulares, sobre os quais todo mundo fala sem nunca chegar a uma versão correta ou definitiva sobre “A Vida”… simplesmente porque não existe uma versão correta ou definitiva a respeito. Na dimensão da vigília temos a violência, a maldade e a bondade humanas, os “sonhos acordados”, a busca para ser feliz e realizar desejos. Na dimensão dos sonhos, onde nada podemos fazer diante do que vemos, há uma representação fantástica, cifrada ou inspiradora da nossa existência, do nosso íntimo, de uma parte nossa que às vezes queremos ocultar.

A Casa de Bonecas é uma representação da vida em miniatura, em um momento de crise. Nela encontramos uma fauna rica de personagens que atravessam a nossa existência e que não fazem ideia daquilo que podemos ser. Às vezes nem nós sabemos sobre o nosso potencial destrutivo, como a personagem-Vórtice do arco, com sua vida de cabeça para baixo sem saber o que estava de fato acontecendo ao seu redor. Neil Gaiman reflete sobre sonhos de grandeza, sobre causar dor aos outros e sobre tentar fugir (dormindo ou acordado) das dores que sofremos. É um arco bastante inteligente na maneira como apresenta novos Perpétuos e na maneira como explora mais algumas camadas da vida sob o ponto de vista da cultura e da arte. Um presente denso e reflexivo que costura o nosso cotidiano à fantasia onírica e cheia de significados, num enredo difícil de superar.

Sandman #9 a 16: Casa de Bonecas (The Sandman Vol.2 #9 – 16: The Doll’s House) — EUA, setembro de 1989 a junho de 1990.
Roteiro: Neil Gaiman
Arte: Mike Dringenberg (#9 a 11; 14 a 16), Chris Bachalo (#12), Michael Zulli (#13), Sam Kieth (#15)
Arte-final: Malcolm Jones III (#9 a 12; 14 a 16), Steve Parkhouse (#13)
Cores: Robbie Busch
Letras: Todd Klein, John Costanza
Capas: Dave McKean
Editoria: Karen Berger, Art Young
232 páginas

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