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Crítica | Se a Rua Beale Falasse

por Gabriel Carvalho
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“Você está preparada para isso?

Eu nunca estive mais preparada para nada na minha vida inteira. Você sabe que eu te amo, não importa o que aconteça.”

Se a Rua Beale Falasse, continuando a carreira do excelente Barry Jenkins, cineasta responsável por Moonlight – Sob a Luz do Lar, é um longa-metragem que conversa com uma certa atemporalidade, mesmo se passando, tecnicamente, nos anos setenta. O contexto da época, por exemplo, não é referenciado. A trilha sonora acompanha um ritmo próprio, consideravelmente associado a essa década, porém, não vemos referências diretas a artistas contemporâneos à ocasião. As imagens mostradas, no início e no fim, elevam essa especialidade da obra, uma espécie de amálgama para milhões de histórias, representante do imensurável distúrbio que inúmeras características da sociedade causa em muitos e muitos indivíduos, apenas por eles possuírem determinada cor de pele. Os mais puros dos relacionamentos são desconstruídos em decorrência de equívocos monstruosos, separando os privilegiados dos que não são privilegiados. Os contos de fadas são atemporais, porém, esse não é um conto de fadas ordinário, mas uma contra-argumentação, no meio termo entre a ruptura completa com os pensamentos mais serenos sobre as possibilidades do amor e a esperançosa manutenção dele, apesar dos muitos pesares.

O amor é impossível? Os protagonistas do filme são Tish, interpretada pela adorável KiKi Layne, transmitindo a necessidade do roteiro pelo retrato de uma mulher guerreira, desenvolvendo-se como lutadora e enfrentando os pesares da necessidade por dinheiro, além da ausência do marido, e Fonny, interpretado pelo charmoso Stephan James, conseguindo capturar, apenas com o seu olhar, sua paixão indescritível pela sua eterna namorada. Os pombinhos são, no agora, separados por um vidro, pontuação prenunciada pela narração, uso narrativo que apenas agrega às imagens, sem tornar-se substituto, entretanto, auxiliar atmosférico. Barry Jenkins entende a necessidade da criação de um conto de fadas, porque, com isso, apesar da adversidade exibida – o garoto atrás das grades e a garota grávida – quer enaltecer uma inocência primeira, de que os justos vencerão. A notícia da gravidez, por exemplo, é encarada com sorrisos. As preocupações ficam para depois, um futuro mais perto do que parece. A necessidade por dinheiro para pagar advogados, portanto, é uma premissa potente. A palavra racismo não é citada. A palavra racista não é citada. O cineasta não precisa citar nenhum dos dois termos para, no entanto, mostrá-los enormemente evidentes.

Os ares quase sagrados que estão dispostos ao redor do está em cena, figurinos coloridíssimos, assim como a cenografia, ao passo de uma maquiagem que permite todos os personagens soarem puros, são capturados pela excelente cinematografia de James Laxton. Os contos de fadas ultrapassam a realidade, e Se a Rua Beale Falasse é um ultimato acerca da impossibilidade de uma fuga completa dessa realidade, nesse contexto. Nem os contos de fadas, com as trilhas sonoras mais reconfortantes possíveis, conseguem resistir completamente. O longa metragem possui um primeiro ato centrado na construção da mística, do relacionamento como algo que não pode ser tocado. As crianças brincando na banheiro. O primeiro beijo quase lírico. A própria cena de sexo, mais crua, também ascende certa jovialidade, de um casal investindo-se derradeiramente em uma narrativa romântica apaixonante. Eis uma intocabilidade demasiadamente frágil. O mundo como se apresenta, com policiais corruptos – um antagonista pequeno, porém, extremamente significativo – não permite o conto de fadas puro. Uma aparência ingênua de bem e mal, supostamente mais simples de ser compreendida, que a justiça, contudo, não consegue distinguir.

O presente é intercalado com o passado, elencando um sentimento do espectador a outro. As sugestões são enaltecidas, sem redundância, como o caso da agressão na prisão, respondida, emocionalmente, com a participação de Brian Tyree Henry – em mais uma certeira atuação, depois do ótimo As Viúvas. As cenas com o artista são maravilhosas, rompendo, pela primeira vez no longa-metragem, com um semblante de que as mazelas sociais não atingiriam ostensivamente os personagens retratados. O espectador, mergulhado em seu próprio universo, de conceitos pré-estabelecidos, acredita que Fonny foi preso por algum envolvimento com tráfico, com roubo. Quando a ideia por trás da prisão é verdadeiramente revelada, destruindo as reminiscências de um cárcere “justo”, mas ainda entristecido, o cineasta comanda com um cuidado extremo a abordagem a uma mulher que foi estuprada, sem querer torná-la antagonista, mas uma peça inexorável àquela inércia entre o que há de ser feito e “o que deve ser aceito” – a resistência é continuar amando, a manutenção de uma fé no coração da criança, a exemplo. Um homem negro não precisa ser criminoso para tornar-se criminoso, apenas basta que alguém o apresente assim. Cada membro da família trabalha para que o sucesso seja alcançado e estamos imersos na missão, além da justiça.

LEVES SPOILERS!

O que esse amor eterno significa, senão, é claro, eternidade? Também resistência. Os obstáculos que existem para os contos de fadas, em contextos subversivos aos de contos de fadas comuns, aparecem, mas como um casal perfeito como esse poderia terminar dessa maneira? Se a Rua Beale falasse, ela narraria as histórias de inúmeras injustiças que acometeram homens negros – como acontece aqui. Se a Rua Beale falasse, ela narraria as histórias de inúmeras mulheres que tiveram que criar seus filhos sozinhas – como acontece aqui. Se a Rua Beale falasse, ela contaria as histórias de crianças que cresceram com seus pais atrás das grades – como acontece aqui. Mas se a Rua Beale falasse, adiantaria de algo, mudaria algo? Nós escutaríamos a Rua Beale? Um conto de fadas que simplesmente não tem um final feliz como outros contos de fadas, com princesas ricas e príncipes loiros. Mas a destruição é renegada. Os amores de contos de fadas os fazem mais fortes, resistentes. Esse é um conto de fadas em que a exceção é os felizes para sempre, mas por quê necessariamente tristes para sempre? O amor se reinventa em meio ao desastre. Canta, dança e fala o que tem para falar, sem deixar de se apaixonar, sem deixar de olhar nos olhos de quem ama e, por fim, amar. Maior que todas as lutas é nunca abandonar a luta.

  • Crítica originalmente publicada em 12 de novembro de 2018 como parte da cobertura do Festival do Rio.

Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk) – EUA, 2018
Direção: Barry Jenkins
Roteiro: Barry Jenkins, James Baldwin
Elenco: KiKi Layne, Stephan James, Regina King, Colman Domingo, Teyonah Parris, Michael Beach, Aunjanue Ellis, Ebony Obsidian, Dominique Thorne, Diego Luna, Finn Wittrock, Ed Skrein, Emily Rios, Pedro Pascal, Brian Tyree Henry, Dave Franco, Bobby Conte Thornton, Marcia Jean Kurtz
Duração: 117 min.

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