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Crítica | Contágio em Alto Mar

por Leonardo Campos
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Os monstros marinhos desconhecidos, habitantes das zonas mais profundas dos oceanos, locais que a humanidade e seus estudos científicos avançados ainda não conseguiram dar conta por completo, retornam constantemente como temas de produções do gênero aventura, suspense, terror, ficção-científica e o rentável e permanente subgênero horror ecológico, segmento que parece infindável. Com lançamento excessivamente tímido, haja vista a potencialidade de sua estrutura narrativa, Sea Fever é uma sufocante e intensa pequena obra-prima, produzida em 2019 e lançada em VOD logo após a pandemia por covid-19 ter se tornado mais abrangente que o esperado e mudado as relações culturais que regiam o processo de distribuição e exibição de filmes, algo que ainda não compreendemos o suficiente, afinal, estamos numa fase de transição. Mesmo que não cite em momento algum o nosso “novo normal”, isto é, a reconstrução de nosso cotidiano dentro de uma realidade de isolamento social, paranoia e muita desconfiança, o filme se tornou uma alegoria para a fase em questão. É uma representação simbólica perfeita para o momento. E uma opção de entretenimento muito acima da média, o tipo de narrativa que nos pega de surpresa e agrada pela direção segura e construção dramática sofisticada.

Ao longo de seus 95 minutos, o filme dirigido e escrito por Neasa Hardiman é um horror contido, sem momentos de histeria entre os personagens, sensação sufocante que deixa a atmosfera apavorante ainda mais tensa, pois o temor é pulsante, mas não extravasado ao passo que a tripulação de uma embarcação pesqueira descobre que a viagem aparentemente rentável para todos na verdade pode ser a última experiência de suas vidas. Na trama, acompanhamos um grupo que se encontra abandonado em pleno vastidão do oceano, ameaçados por uma infecção parasitária oriunda de uma criatura marinha que lembra uma lula gigantesca, mas na verdade é uma criatura desconhecida, ao menos pela pesquisadora Siobhán (Hermione Corfield), jovem que devido ao necessário processo observatório de seu doutorado, compra um lugar na embarcação para investigar determinados traços da fauna marinha, mas é tomado por uma fascinante e desagradável surpresa ao descobrir que o ser fincado no casco do barco é tudo, menos algo fácil de ser compreendido. Em seus estudos sobre padrões, a pesquisadora jamais viu algo do tipo. Assim, numa mescla de horror de monstro e traços da ficção sobre temas pandêmicos, Sea Fever joga os seus personagens e, consequentemente, os espectadores, numa jornada de horror com remotas possibilidades de um desfecho satisfatório para as figuras que querem permanecer vivas.

No controle da embarcação temos Gerard (Dougray Scott), comandado por sua esposa, a capitã e dona do empreendimento pesqueiro, Freya (Connie Nielsen). Junto ao casal, ainda temos o engenheiro Omid (Ardalan Esmaili) e os assistentes de bordo Johnny (Jack Hickey), Ciara (Olwen Fouéré) e Sudi (Elie Bouzake). Com algumas exceções, eles hostilizam a pesquisadora constantemente, principalmente quando ela observa que a fauna marinha tem apresentado comportamentos estranhos nos trechos por onde eles se deslocam. A guarda costeira havia informado que a direção que eles tomavam era para uma zona de exclusão, mas esse comando é ignorado por Gerard, interessado em melhorar economicamente e reticente, não cede e coloca todos numa situação inesperada e mortal. O foco em aumentar os lucros fracassa e num determinado momento, a tripulação se depara com brechas no casco que expelem um lodo verde, como se a estrutura do barco estivesse corroendo. Um ser, tal como mencionado, é parecido com uma lula, mas com adesão como se fosse um conjunto de cracas, os crustáceos conhecidos por agarrar em superfícies e no caso de embarcações, retardar o seu avanço. Depois de muita indecisão, Siobhán traja os equipamentos adequados, pula com uma faca em mar aberto e tenta extrair um dos seres, mas descobre em sua observação que nada do que foi imaginado pelo grupo chega perto da realidade aterrorizante que se apresenta. O organismo luminescente vai além.

Todas essas cenas ganham força com a direção de fotografia de Christoffer Franzén, responsável por nos fazer testemunhar os fatos pelos corredores apertados da embarcação, concebidos pelo design de produção de Ray Bell. Juntos, os setores empregam ao filme as paletas azuladas habituais para um filme com cenografia externa oceânica, internamente tomado por tons amadeirados e traços de ferrugem, tonalidade que aumenta ao passo que a vida dos tripulantes se torna cada vez mais ameaçada, seja pelo aumento das possibilidades de contaminação num corte com uma faca ou alguma ferramenta qualquer, sensação também presente na percepção deturpada dos sentidos, um sinal de aumento da crise que leva o indivíduo aos confins da morte em poucas horas após a contaminação. A cenografia e sua direção de arte permitem que Sea Fever exalte ao máximo a sensação claustrofóbica de um isolamento dentro de outro isolamento, pois além de se encontrarem perdidos numa zona de exclusão, o grupo precisa criar mecanismos para sobrevivência, numa quarentena que gera medo e desconfiança, num convite constante ao teste das habilidades psicológicas de cada um. A textura percussiva de Christoffer Franzén é um espetáculo de tensão, tal como os efeitos visuais supervisionados por Alex Hansson, ambos os setores com uma habilidade incrível de dar os seus toques sem recorrer ao excesso. Aqui, o monstro apavora por sua beleza, visto pelos ângulos certos, bem como insinuado pela inserção interessada em valorizar a composição musical, sem torna-la mero adorno narrativo.

Numa tentativa vã, eles tentam a rede, mas não dá certo. A criatura tentacular cede, mas deixa os seus refugos aderidos ao casco, organismos vivos que continuam o estrago. Outra embarcação à deriva parece ser uma alternativa de socorro, mas ao visitar os possíveis tripulantes, descobrem que eles já passaram pela experiência em questão antes, sem resultados esperançosos. Acometidos pela mesma “febre da cabine” que tomará a vida de alguns dos personagens de Sea Fever, o filme também nos revela a necessidade de quarentena, pois além de barrar o avanço da embarcação, a criatura desconhecida contaminou a água, algo que consequentemente já condenou quem consumiu qualquer alimentação durante este período, numa série de acontecimentos posteriores que se desdobram diante de um meticuloso exercício não apenas da estrutura dramática do roteiro, mas do cuidado estético da equipe gerenciada pela direção e escrita de Neasa Hardiman. Num universo cinematográfico com exaustão da temática, a cineasta comanda com firmeza o seu elenco e nos entrega um filme realizado com esmero. É na simplicidade de seus pontos nevrálgicos que as questões sociológicas e filosóficas se desenvolvem, em mais uma ilustração comprobatória da indústria cultural ser capaz de elaborar entretenimento sem as habituais ofensas aos espectadores, muitas vezes tratados com descaso em filmes do tipo, repletos de efeitos visuais caros, mas dramaticamente estéreis.

Ademais, impossível não perceber as tensões contextuais de Sea Fever no que tange ao feminino em evidência na produção. Este é um filme onde as mulheres ocupam lugares de gerenciamento, internos e externos ao processo ficcional. Ainda há muito o que vencer, mas aqui podemos contemplar uma mulher na direção de uma narrativa de horror e aventura, pois muita gente ainda acredita na maior habilidade das diretoras para filmes de drama, romance e comédia. O panorama tem modificado e os resultados são favoráveis ao engrandecimento de um equilíbrio ainda longe de ser alcançado com a devida justiça na indústria, mas nas pequenas mudanças e reajustes, podemos observar avanços mais significativos adiante. Basta continuar com a militância. Outro detalhe é o protagonismo do filme, também feminino, tanto da narrativa em geral quanto no gerenciamento da embarcação. A pesquisadora é quem tem as melhores respostas para desvendar os mistérios em torno da crise estabelecido na produção, mesmo que os demais tripulantes tenham anos de experiência marítima. É fato que o personagem de Dougray Scott toma algumas decisões, mas é a palavra de “Connie Nielsen” que oficialmente determina o desdobramento de cada ação pesqueira, algo fora do combinado apenas por uma manobra errônea e sem a devida autorização do personagem masculino teimoso. Numa cultura cinematográfica onde era muito comum a presença de mulheres que precisavam ser salvas, o jogo mudou. Na ficção e na produção.

Sea Fever — Estados Unidos, 2019
Direção: Neasa Hardiman
Roteiro: Neasa Hardiman
Elenco: Hermione Corfield, Dougray Scott, Ardalan Esmaili, Jack Hickey, Connie Nielsen, Olwen Fouéré, Elie Bouzake
Duração: 95 min.

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