São duas horas da madrugada de um dia assim
Um velho anda de terno velho, assim, assim
Quando aparece o guarda belo
Quando aparece o guarda belo
É posto em cena, fazendo cena, um treco assim
Bem apontado ao nariz chato, assim, assim
Quando aparece a cor do velho
Quando aparece a cor do velho
Mas guarda belo não acredita na cor assim
Ele decide no terno velho, assim, assim
Porque ele quer um velho assado
Porque ele quer um velho assado
Mas mesmo assim o velho morre assim, assim
E o guarda belo é o herói assim, assado
Porque é preciso ser assim, assado
Porque é preciso ser assim, assado
Poucos álbuns na música brasileira carregam a sensação de ruptura total que o disco de estreia de Secos & Molhados provoca ainda hoje. Lançado em 1973, no auge da ditadura, a obra já nasceu como um paradoxo: popular e transgressor, acessível e hermético, pop e literário, ingênuo e profundamente político. Não há nada nele que não pareça de algum modo inaugural, como se Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad tivessem aberto uma rachadura na história cultural brasileira para permitir a entrada de uma outra forma de existir. Revisitar o álbum é revisitar um tempo e, ao mesmo tempo, uma miragem folclórica. É escutar um Brasil proibido, um Brasil imaginado, um Brasil sobrevivente.
Portanto, se há algo que define este disco é a sensação de estranhamento, uma identidade construída a partir de fragmentos que jamais deveriam combinar e que, no entanto, formam um todo coeso. O trabalho é uma colagem: poesia, música portuguesa, folclore, rock progressivo, MPB, psicodelia, teatro, cabaré, tropicalismo tardio, manifesto queer, ritual indígena, etc. Tudo disposto com uma precisão musical que transforma caos em estética. O que poderia ser apenas extravagância vira síntese, e o álbum funciona como espinha dorsal de uma utopia estética, em que arte, política e corpo não se separam.
Antes de entrar faixa a faixa, é impossível não reconhecer o centro gravitacional do disco: Ney Matogrosso. Sua voz não é apenas um instrumento; é uma entidade. É uma performance vocal que ultrapassa qualquer gênero musical e qualquer gênero identitário. Ney canta com uma androginia feroz, uma vulnerabilidade agressiva e uma espécie de erotismo espiritual. O timbre agudo e cortante transforma cada canção em um corpo vivo, tenso, pronto a se fragmentar.
No Brasil militarizado, seu canto era contravenção. Sua presença cênica, mesmo apenas sugerida pelo áudio, dá ao álbum uma qualidade teatral. É como se cada música fosse encenada. Como se por trás de cada emissão vocal houvesse um gesto, um olhar, uma máscara. É uma música que quer ser vista enquanto se deixa ouvir. E é isso que faz o disco escapar do tempo e continuar magnetizando gerações.
O disco abre com uma das declarações estéticas mais poderosas da música brasileira. Sangue Latino não é apenas uma faixa de abertura; é um rito de passagem. A percussão seca, o violão calmo, o canto que parece vir de um ritual ancestral, tudo aponta para um “eu” coletivo, um sujeito latino-americano que reivindica corpo e terra. A letra mistura fatalismo e afirmação, poesia e manifesto.
A produção aqui privilegia o espaço: a voz de Ney é deixada à frente, limpa, quase desnuda, enquanto o arranjo permanece contido, quase uma canção de fogueira. A força da faixa está justamente nessa contenção, anunciando um mundo inteiro em poucos minutos, e o faz sem pressa. É a porta de entrada para a mitologia do grupo.
Na faixa seguinte, o elétrico avança na melodia do épico carnavalesco de O Vira, não apenas pela associação com a cultura portuguesa, mas porque a faixa é construída em torno de uma teatralidade exuberante. O ritmo acelerado, a percussão folclórica, os backing vocals coreografados, tudo funciona como uma coreografia sonora. Tecnicamente, é uma faixa impecável na sua simplicidade: nenhum instrumento é supérfluo, tudo trabalha para esse clima de festa estilizada. O canto de Ney, de novo, assume o protagonismo ao brincar com a narrativa do lobisomem, com certos comentários sarcásticos no subtexto, e ao transformar folclore em teatro pop.
Mudando radicalmente o clima, a banda entra em um registro ainda mais irônico em O Patrão Nosso de Cada Dia. O violão dedilhado e os efeitos vocais de apoio criam um clima de sátira, com uso do Pai Nosso. A crítica ao capitalismo e à exploração vem embrulhada em humor, mas não perde a acidez. Há aqui uma das marcas do álbum no uso do lúdico para atacar estruturas sólidas. A música desmonta a lógica do trabalho alienado com uma leveza que a censura não soube decifrar.
O violão é a espinha dorsal da faixa; rítmico, incisivo, quase percussivo. Ele toca em batidas bem marcadas, criando uma pulsação constante que remete a marcha cotidiana, a uma repetição mecânica que emula a rotina do trabalhador; aquela cadência circular do “mais um dia, mais um turno”. A harmonia é relativamente simples, com poucas dissonâncias para além de uma flauta melancólica, mas o ataque das cordas é seco, curto, propositalmente “duro”. A leveza do ritmo contrasta com a dureza do tema e é justamente aí que a melodia vira comentário político.
Seguimos com o simples Amor, que fala sobre… amor, mas sem ser meloso, sem ser apelativo, com uma linha de baixo espetacular que é uma porrada, carregando a música inteira. Após, desaguamos na bela e longa introdução de blues de Primavera nos Dentes, faixa que sintetiza a inquietação política e espiritual do trio. Uma canção de resistência disfarçada de poesia existencial, uma convocação íntima que atravessa décadas como se ainda reagisse ao presente. É uma música que fala de briga contra o sistema, de perseverança durante a tempestade, com os dentes rangendo pela luta cotidiana. Um verdadeiro hino de quem não se dobra às injustiças, encapsulado num grito raivoso ao final da canção.
Assim Assado, de certa forma uma faixa “menor”, quase uma brincadeira folclórica, mas que tem uma peça importante no repertório do disco. É uma canção construída a partir do humor, numa estrutura lírica que parece uma cantiga infantil, mas com melodia embebida do glam rock em um arranjo sofisticado que tem uma das letras que mais gosto na produção, brincando com a ideia de nostalgia, de saudosismo, de conformidade, tudo num tom lúdico e performático que quase esconde o comentário social mordaz e moderno. Vemos uma abordagem similar na melodia alegre e na letra irônica da divertida Mulher Barriguda, que versa sobre o futuro das crianças em meio às guerras.
Depois do interlúdio curto de El Rey, uma faixa de transição bonita em referência a Manuel I de Portugal, com uma melodia meio cerimonial e de cortejo (com ironia embutida, claro), temos a magnífica Rosa de Hiroshima, uma das mais belas transposições de poesia para música já feitas no Brasil. A letra de Vinicius de Moraes ganha um tratamento delicado, extremamente reverente. O arranjo minimalista do violão, o sopro discreto, os pequenos efeitos de ambiência, permitem que o texto seja o centro. Mas não é só isso: é a interpretação de Ney que faz a canção transcender.
É um canto que não grita a dor, mas a carrega. É como se a produção mantenha a voz muito próxima do microfone, realçando respirações, pequenas quebras de timbre. É uma dor íntima, devastadora, que ecoa um trauma global. Numa época em que a ditadura militar censurava qualquer referência a violência e política, a canção funciona como denúncia indireta e como obra de arte imortal.
Após, mudamos novamente de tom, com Prece Cósmica, uma faixa meio psicodélica, com efeitos vocais e uma melodia inusitada entre a guitarra elétrica e tons característicos de folk. Em conjunto com a mistura improvável de rock progressivo e poesia de Manuel Bandeira em Rondó do Capitão, e na etérea As Andorinhas, temos três canções bem diferentes, mas todas que, de sua maneira, se encaixam no mosaico folclórico e teatral do álbum.
Temos o fechamento do álbum com Fala, uma bela canção que pode ser analisada tanto com um olhar de empatia para ouvir o próximo, quanto uma crítica para o discurso intransigente e a censura da época da ditadura (sou mais afeiçoo à segunda leitura, só para ressaltar). A calmaria lírica, a melodia em linha com o trabalho de todo o disco, e o surpreendente solo final de sintetizador sintetizam toda a estranheza caótica que faz perfeito sentido dentro dessa salada de costumes musicais espetacular.
Secos & Molhados não foi apenas um sucesso estrondoso, foi um evento cultural, um abalo estético, político e identitário. O disco articula poesia, teatro, política, folclore, erotismo e espiritualidade com uma naturalidade que parece impossível. E, ainda mais impressionante, faz isso sem perder a coesão musical. É um álbum que ousa tudo sem forçar nada; que quebra tudo sem parecer destrutivo; que inventa tudo sem parecer artificial. A obra permanece, cinquenta anos depois, como um dos maiores testemunhos de que a música pode ser mudança, máscara, poema, arma e cura ao mesmo tempo. É um disco que não envelhece porque não pertenceu ao seu tempo. Ele sempre pertenceu ao futuro que ainda estamos tentando alcançar. Simplesmente atemporal.
Secos & Molhados
Artista: Secos & Molhados
País: Brasil
Lançamento: 1973
Gravadora: Warner Music Brasil, Continental
Estilo: MPB, vocal, folk, rock progressivo, glam rock, pop psicodélico
Duração: 30 min.
