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Crítica | Sem Destino (1969)

A eterna resistência ao novo.

por Kevin Rick
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Lançado em 1969, em meio à ebulição da contracultura, à Guerra do Vietnã e à transformação dos valores da juventude norte-americana, Sem Destino (Easy Rider) tornou-se o símbolo artístico de uma geração em ruptura com os valores da época e suas tradições antiquadas. Dirigido por Dennis Hopper e estrelado por ele e por Peter Fonda, o filme vai além das telas para se tornar um manifesto que capturou um período de transição e que ajudou a catapultar não apenas uma nova era social nos EUA, como também fez parte da gênese da Nova Hollywood dos anos 70. Sem medo de provocar e sem receio de escandalizar, o longa encapsula o movimento cinematográfico em seu espírito independente, veia autoral e total liberdade artística que redefiniria a próxima década do Cinema.

A narrativa é descomplicada: Wyatt (Fonda) e Billy (Hopper) são dois motociclistas que, após venderem drogas no início do filme, cruzam os Estados Unidos rumo a Nova Orleans para o Mardi Gras. O dinheiro serve como um passaporte para a liberdade, mas é a jornada em si que constitui o coração do filme, como um bom clichê ganhando vida ao mesmo passo que é subvertido a cada recorte da “aventura”. Pelo caminho, os personagens encontram comunidades alternativas, preconceito, violência e uma série de figuras que simbolizam facetas de uma América dividida entre tradição conservadora e os novos ventos do liberalismo social, na forma como a trama simples se torna uma trajetória de representações e indagações culturais.

Em alguns momentos, a narrativa pode até soar solta demais ou arbitrária, mas a “aleatoriedade” é enganosa e a simplicidade do roteiro é proposital. A ideia de road movie serve aqui como metáfora da busca por sentido, por um lugar de pertencimento e por uma vida que escape às amarras do conformismo. Ao longo da viagem, a produção coloca seus protagonistas frente a uma América que não os quer, que os teme e que eventualmente os destrói. Nessa jornada, para além do enredo linear, é a atmosfera, a trilha sonora e sobretudo o espírito de rebeldia que tornam Easy Rider um clássico duradouro. Um filme cuja forma e conteúdo são inseparáveis da época em que foi produzido, mas que ainda ecoa com força melancólica nas crises culturais contemporâneas.

Naturalmente então, Dennis Hopper, em seu primeiro trabalho como diretor, rompe com as convenções formais do cinema hollywoodiano clássico. A edição fragmentada, o uso de jump cuts, as transições abruptas entre cenas e a câmera inquieta revelam uma estética suja, quase documental. Há uma crueza deliberada no modo como os personagens são filmados, especialmente nas cenas em que estão simplesmente pilotando suas motos ao som de rock psicodélico. Em determinados momentos, a produção até flerta com um amadorismo improvisado, algumas falhas técnicas visíveis e erros de continuidade, mas o estilo é mais do que autêntico: é representativo da história que está sendo contada, desse meio cultural e de como esses personagens vivem. Chega a ser cômico como as transições ecoam o próprio estado de transe das figuras da obra.

Em conjunto com a direção, a trilha sonora integra o espírito do que está sendo construído. Desde a abertura com Born to Be Wild do Steppenwolf, o espectador entende que esta será uma viagem sonora tanto quanto visual. Músicas de The Byrds, Jimi Hendrix, The Band e outros artistas capturam a psicodelia, o niilismo e a energia caótica da época, em uma curadoria sonora que traduz em acordes aquilo que as palavras não alcançam no sentimento ao mesmo tempo de liberdade e de desilusão da jornada, com canções que são praticamente comentários que traduzem cenas. É interessante, também, como a trilha rompe com a ideia mais clássica de um corpo musical de composições originais, em uma abundância de hits de rock e pop.

Aliado à técnica, as performances do elenco complementam um filme que superficialmente parece solto, mas que é bem pensado em cada aspecto. Peter Fonda traz uma interpretação críptica, serena e introspectiva, quase como a personificação do hippie zen, sendo que seu visual com uma jaqueta com a bandeira americana é ao mesmo tempo irônico e simbólico: o herói contracultural vestido de patriota, questionando a própria nação que representa. Dennis Hopper, por outro lado, encarna Billy com um espírito mais impulsivo e caótico, batendo mais de frente com tradições. E por fim, temos um excelente Jack Nicholson, em uma das primeiras performances que o levariam à fama, surgindo como o advogado alcoólatra George, cuja breve passagem pelo filme oferece alguns dos momentos mais incisivos de crítica social e cômica desilusão (o ator rouba cada frame e sua pequena participação no filme deixa uma impressão muito maior do que sua minutagem).

A química entre os atores, especialmente nas cenas de improviso, confere ao filme uma organicidade rara. É um cinema silencioso, de gestos e de olhares, que precisa ser digerido pela audiência em partes e que exige da mesma interpretação, apesar de trazer, também, algumas lições e monólogos (principalmente de George), que ajudam a dinamizar a mensagem de que a liberdade prometida pelo sonho americano é, para muitos, uma ilusão. A jornada de Wyatt e Billy é uma busca espiritual por autonomia, por um modo de vida que não seja ditado por corporações, religiões ou governos, mas o que encontram, repetidamente, é medo, violência e rejeição. Entre uma sequência psicodélica num cemitério que provoca a intolerância ou uma cena final brutal que simboliza o epitáfio do sonho dessa geração, a jornada dos personagens é uma manifestação de uma nação que quer se reinventar, mas que vê suas utopias serem esmagadas pela realidade conservadora e reacionária de suas instituições.

Cristalizando a figura do motociclista como símbolo de liberdade no imaginário popular, Sem Destino (Easy Rider) reflete os conflitos reais da juventude da época, em todas as suas contradições e inquietações, convidando uma nova era do cinema americano, mas indo além ao ser um manifesto artístico da angústia e dos sonhos de uma juventude que prega liberdade frente a sua busca de pertencimento e, sobretudo, de significado. Um filme típico de estrada, a produção caminha pelas transformações e mudanças de um período e por uma nação que ainda encontrava seu caminho, revisitando esse momento de ruptura para mostrar não só a transição, mas também o fim da linha para esses personagens e a repetição de ciclos de exclusão que permanecem atuais.

Sem Destino (Easy Rider) | EUA, 14 de julho de 1969
Direção: Dennis Hopper
Roteiro: Peter Fonda, Dennis Hopper, Terry Southern
Elenco: Peter Fonda, Dennis Hopper, Jack Nicholson, Luke Askew, Phil Spector, Karen Black, Toni Basil
Duração: 96 min.

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