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Crítica | Sem Ursos (2022)

A imagem, a tradição e a prisão.

por Luiz Santiago
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A produção de Sem Ursos foi finalizada em maio de 2022. Em 11 de julho, o diretor Jafar Panahi foi preso, quando compareceu ao Ministério Público de Teerã para assistir a audiência sobre a prisão do cineasta Mohammad Rasoulof, preso por questionar, na internet, a violência policial no país. Essa prisão de Panahi, no entanto, acabou gerando um efeito em cadeia que terminou em 1º de fevereiro de 2023, quando, após dois dias de greve de fome, o cineasta foi solto, depois de pagar fiança. Sua condenação de 2010, de que ele não poderia sair do Irã até o ano de 2030, aparentemente também caiu por terra. Em abril de 2023, após 14 anos sem sair do país, ele fez uma visita à França. Seu advogado, Saleh Nikbajt, disse o seguinte em entrevista: “até onde eu sei, não há mais nenhum processo legal aberto contra ele“. Sem Ursos, escrito e filmado antes desses eventos, reflete sobre a liberdade e o poder que a imagem pode ter para determinadas pessoas, ideias, regimes e situações.

Panahi (como personagem) está em uma aldeia próxima à fronteira com a Turquia. Como ele não pode sair do país, sua intenção é estar o mais próximo possível do local onde está rodando um filme remotamente, através de videochamadas e de um diretor assistente chamado Reza (Reza Heydari). O deslocamento do cineasta de um movimentado centro urbano como Teerã para uma isolada vila do interior, já faz toda a diferença em termos de impacto visual, cultural e dramático no filme. Ele precisa lidar com superstições, com tradições e ações de honradez que espantam a qualquer indivíduo de um meio cosmopolita. Para o “Panahi personagem”, esse deslocamento é inicialmente simbólico. Ele não quer passar clandestinamente para a Turquia — embora isso lhe seja constantemente ofertado. Ele apenas quer ter a sensação de estar próximo, e se contenta em estar num lugar com poucos recursos e com sinal de internet fraco e inconstante. O que ele não esperava é que sua presença e o exercício de sua arte movimentariam de forma inimaginável a vida dos habitantes da vila onde está morando e de seus atores do outro lado da fronteira.

O “Panahi diretor” de Sem Ursos usa a metalinguagem para engrossar o coro contra a repressão, contra o cerceamento da liberdade de ir e vir e de criar livremente. Mas no microcosmo de uma pequena vila entre Irã e Turquia, nada disso parece ter importância. O diretor interno e externo ao filme está lidando com “ursos devoradores de pessoas que tomam o caminho errado” e, ao longo da obra, temos uma boa noção de quem são esses ursos e o que podem fazer com as pessoas que se colocarem na contramão da tradição, das forças estabelecidas, das superstições. Um ótimo filme turco da mesma safra (Dias Ardentes, de Emin Alper) também abraça a mesma questão ao falar de um promotor que é designado para uma pequena vila turca e quer fazer a coisa certa, contrariando certos hábitos locais. A realidade material de diversos grupos sociais possui leis próprias e uma maneira diferente de lidar com transgressores, com quem atrapalha o bom funcionamento moral do grupo. E o problema pode ser uma pessoa, uma ideia, uma preferência ou uma imagem.

Os cortes entre as cenas são feitos no momento exato para que não invadam ou e sublimem a atmosfera de uma sequência e, ao mesmo tempo, no momento preciso para causar o choque desejado no público, vide uma certa descoberta numa vila litorânea ou a marcante última cena do longa. Há um pessimismo inerente a todas as situações aqui. Seja como personagem, seja como pessoa real, Jafar Panahi está cercado pela violência e repressão (e ele, nesse caso, é o símbolo de todo artista, em diferentes lugares e momentos históricos), e sua arte, sua capacidade de capturar momentos, estão na mira de diversas pessoas, algumas com poder de fogo, inclusive. O que fazer, então? Fugir e deixar que as consequências de uma fotografia ou de uma filmagem fluam livremente? O “Panahi diretor” nos lembra constantemente que estamos assistindo a uma obra ficcional, mas seu conteúdo está tão amarrado à realidade, que se funde ao que vemos dia após dias nos noticiários.

A arte do diretor e do personagem Panahi é um perigo para ele e para os outros. E mesmo que digam-lhe que “não há ursos à espreita“, ele tem experiência o bastante para saber que, em determinadas circunstâncias, o caminho tomado por um artista pode ser visto como o “caminho errado“. E então, o urso que supostamente não existia, surge com sede de sangue e deixa um rastro de violência por onde passa. Para as famílias das vítimas, o sofrimento. Para o artista, a consciência pesada. Fazer ou não fazer arte em locais perigosos? Vale a pena utilizar a imagem para enfrentar a barbárie humana? Há saída para a opressão política via denúncias feitas por câmeras? Afinal de contas, existem ou não existem ursos preocupados com o que revelam as fotografias e os filmes?

Sem Ursos (Khers Nist / No Bears) — Irã, 2022
Direção: Jafar Panahi
Roteiro: Jafar Panahi
Elenco: Jafar Panahi, Naser Hashemi, Vahid Mobasheri, Bakhtiyar Panjeei, Mina Kavani, Narges Delaram, Reza Heydari, Javad Siyahi, Yousef Soleymani, Amir Davari, Darya Alei
Duração: 106 min.

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