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Crítica | Senhor das Moscas, de William Golding

Pondo a civilização em xeque.

por Ritter Fan
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Dois livros de cunho filosófico protagonizado por crianças e publicados com pouco mais de 10 anos de intervalo fizeram parte de vários estágios em minha vida e, creio, das vidas de muita gente mundo afora também. De um lado, o esperançoso O Pequeno Príncipe e, de outro, o desesperançoso Senhor das Moscas, como dois lados de uma mesma moeda, serviram e ainda servem de instrumentos para ampliar horizontes e para mostrar, alegoricamente, as facetas bem opostas que a Humanidade pode assumir. É curioso e sintomático notar, porém, que a obra-prima de Antoine de Saint-Exupéry, apesar de ter sido e continuar sendo muito lida, teve um impacto infinitamente menor na cultura pop do que o romance de estreia de William Golding, autor britânico que, em 1983, seria laureado com o Prêmio Nobel de literatura. Claro que essa minha afirmação não tem base científica, mas sim apenas de cunho observacional meu, já que a obra francesa ganhou diversas adaptações que giram em torno de si mesmas, por assim dizer, enquanto que a britânica quase que isoladamente sedimentou um subgênero ou, talvez, um recurso narrativo muito utilizado menos ou mais explicitamente com grande afinco até os dias de hoje, que é a inserção de personagens em um ambiente controlado e limitado para que, então, suas reações sejam estudadas, algo que vemos em uma infinidade de filmes de terror, além de Battle Royale e Jogos Vorazes e chegando no recente Round 6, citações que faço apenas para arranhar a superfície, claro.

A atração universal da premissa de Senhor das Moscas, um estudo que, grosso modo, coloca em choque os desejos de construir civilização e de amealhar poder, é evidente, algo que ganha reflexo todos os dias ao nosso redor, com manchetes jornalísticas que escorrem sangue sendo muito mais relevantes do que outras sobre, digamos, descobertas científicas ou sobre como determinada comunidade venceu as desigualdades e prosperou. Podemos achar que não e até rejeitar a ideia, mas, lá no fundo, a violência e a morte são atraentes e a abordagem pessimista de Golding pode fazer muita gente torcer o nariz, mas é estranho que isso aconteça no mundo em que ele escreveu a obra e, mais ainda, no mundo em que hoje vivemos. Afinal, temos que lembrar que estamos falando de um livro escrito nem 10 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em meio ao recrudescimento da Guerra Fria por um autor que muito claramente derrama, a cada página, sua visão de um mundo prestes a sucumbir novamente a forças ainda mais assustadoras do que aquelas que levaram o planeta a duas guerras mundiais em pouco anos, isso sem contar com os conflitos e horrores que vieram antes.

Certamente com o objetivo de chocar o leitor, ainda que de longe inspirado no romance A Ilha de Coral, de R. M. Ballantyne, Golding elegeu jogar crianças entre a infância e a pré-adolescência em uma ilha deserta em um contexto enevoado que pode ou não referir-se à Segunda Guerra. Não há nenhuma tentativa em esmiuçar o espaço, o tempo, o como e o porquê de as crianças estarem ali para além de elas terem sido vítimas de um acidente aéreo. Golding cria as circunstâncias “ideais” do isolamento dos jovens, ou seja, não há adultos sobreviventes, não há crianças feridas ou até mesmo mortas como resultado do acidente e a ilha fornece tudo aquilo que elas precisam para sobreviver sem muito esforço. O que interessa ao autor é estudar o que acontece com um grupo de jovens (todos meninos, vale também sublinhar) sem supervisão adulta em um ambiente confinado e selvagem, mas não com um fim em si mesmo, mas sim, muito claramente, como uma forma de olhar, com uma boa dose de cinismo, o comportamento humano como um todo e nossa tendência à violência como caminho mais rápido de se alcançar objetivos egoístas.

Ainda que o livro, lido em idades diferentes, possa levar a interpretações diferentes exatamente como acontece com O Pequeno Príncipe, o uso de crianças é pura alegoria, assim como é alegoria toda a construção de um espaço ideal e sem dificuldades físicas, para que os eventos se desdobrem, eventos esses que carregam consigo uma camada sobrenatural – ou religiosa, como queiram – que já fica evidente a partir do título, uma tradução possível de Belzebu, ainda que eu tenha para mim que a mensagem de Golding, nesse aspecto, seja a condenação do uso das crenças para manobrar as massas, para criar medo e oferecer alívio espiritual dirigido. Para além disso, o conflito central da obra se dá entre Ralph, um menino carismático que se torna o primeiro líder do grupo e cujo objetivo principal, aconselhado por Porquinho, a única criança com características físicas menos favoráveis para esse ambiente, por ser muito míope e totalmente fora de forma e que representa a inteligência e a ciência, é o de manter acesa uma fogueira com muita fumaça para facilitar eventuais esforços de resgate, com Jack, irrequieto jovem que logo forma um grupo de caçadores de porcos selvagens, que, aos poucos, vai minando a autoridade democraticamente estabelecida.

É comum definir Ralph e Jack, respectivamente, como protagonista e antagonista, mas minha impressão reiterada e aprofundada nesta releitura é que os dois são como partidos políticos ferrenhamente opostos. Ralph não quer o poder de verdade, mas refestela-se com o poder que cai em seu colo e não sei se é possível afirmar que ele é uma pessoa boa como muitos afirmam por aí, já que é ele o responsável por divulgar o apelido depreciativo de Porquinho e não demonstra reais sentimentos genuínos em relação aos seus “súditos”. Jack, por seu turno, é a manifestação mais direta daquilo que talvez lá no fundo sejamos e que Ralph também poderia ser com muita facilidade, ou seja, da real natureza humana, natureza essa beligerante, violenta, que só se interessa por poder e, por via de consequência, ainda que não mencionado no livro, obviamente, dinheiro. Ralph quer ser Jack, mas não tem o tipo de torpeza moral de estalo que o líder dos caçadores demonstra ter, ainda que ele também fique muito distante da manifestação da razão e do bom senso que é Porquinho, o único ali que enxerga o que está acontecendo, mas nunca tem voz ou vez.

Senhor das Moscas, portanto, é muito, mas muito mais do que as apropriações populares da premissa dão a entender que é. Não se trata, aqui, da violência pela violência, mas sim de um processo, de uma luta inglória da moralidade contra a corrupção, do caminho mais difícil contra o mais fácil, da vida em sociedade contra o controle da sociedade. A obra de estreia de William Golding é um alerta que, porém, só é abordado comumente por aí em sua superfície, pelo que não espanta absolutamente nada estarmos hoje, em 2025, repetindo mais uma vez os erros históricos que levaram o autor a escrever o que escreveu. O mundo é uma ilha e estamos todos nela tentando ser Ralph ou Jack, nunca Porquinho. Que Saint-Exupéry me perdoe, mas Golding acertou em cheio.

Senhor das Moscas (Lord of the Flies – Reino Unido, 1954)
Autoria: William Golding
Editora original: Faber and Faber
Data original de publicação: 17 de setembro de 1954
Editora no Brasil: Editora Alfaguara
Data de publicação no Brasil: 07 de junho de 2021
Tradução: Sérgio Flaksman
Páginas: 216

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