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Crítica | Sertânia

por Luiz Santiago
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Penso que só as pessoas muito jovens ou muito desatentas ao mundo ainda não passaram por algum tipo sério de reflexão sobre a morte. A passagem desse estado de consciência para um outro que não sabemos qual, e que é o nosso grande mistério justamente pelo seu caráter de indefinições. Isso explica porque a morte é utilizada como impulso narrativo de dramas que lidam com memória, legado, história de uma existência e visão daqueles que ficam no mundo após a nossa partida. Em Sertânia (2019), o ato de morrer e todas as possíveis reflexões que isso traz consigo são levados em consideração pelo diretor Geraldo Sarno, que trata a morte como um veículo para contar a história de uma vida e demonstrar as características de um homem num estudo de identidade histórico e simbólico, não apenas do protagonista, mas do povo brasileiro.

Em entrevista por ocasião da 23ª Mostra de Tiradentes, o diretor não deixou dúvidas quanto à sua intenção universalizante em relação aos problemas e aos sentimentos explorados na obra. O sertão e os jagunços aqui são apenas uma escolha de familiaridade espacial e temática para o diretor, que se preocupa com questões ligadas à classe trabalhadora, à migração, às instituições que reprimem manifestantes, que se corrompem, que ajudam a manter a concentração de posses nas mãos de poucos e a fome na vida de muitos. Transporte-se o mote de Sertânia para um ambiente urbano ou rural, que as estruturas sociais e os dissabores humanos retratados pelo diretor, usando a morte como um veículo de passeio, caberão do mesmo jeito. Porque tanto esse tipo de morte quanto a miséria e as relações de poder são vistas em qualquer ambiente de concentração humana no mundo.

Ferido, o jagunço Antão (Vertin Moura) tem uma diferente “passagem da vida diante dos olhos“, enquanto agoniza. O menos importante aqui é a história real de Antão. O ponto é a variação impressa na linha formal do longa, com ciclos de morte que aludem a possibilidades de vida (e também de finais de vida) surgidos no meio social onde esse indivíduo cresceu. E não é só a variação de ciclos alucinantes que denotam isso. A fotografia estourada de Miguel Vassy exibe esses conflitos e tristezas de uma vida num contraluz que quase cega, quase impede de visualizar quadros por completo, quase impede de aproveitar com plenitude a imagem geral, que é a exata visão de vida e posição social desse homem que tem a sua primeira desgraça na derrota Canudos. A partir daí, sua jornada passa por uma adequação “civilizada, cosmopolita, republicana”. Ele está na Sinfonia de uma Metrópole, mas sabe que ali não é o seu lugar. E o corte dele com São Paulo vem justamente com o corte do cordão umbilical, fazendo-o abandonar a “civilidade”, levando-o para o encontro entre Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Antão é uma das muitas facetas do brasileiro que Geraldo Sarno tão bem registrou, nas mais variadas formas, desde os primeiros anos de sua carreira, com Viramundo, Viva Cariri e Vitalino/Lampião. O brasileiro que perde desde a infância. Que é forçado a deslocar-se. Que não pertence, mas é forçado a pertencer. Que é manipulado para repetir um pensamento e em alguns casos, a usar a força contra os inimigos da ocasião, os inimigos do Estado, o próprio povo. Numa conjuntura diferente, acreditando estar entre os seus, Antão vê essa mesma dinâmica repetir-se. Jesuíno (Júlio Adrião), o líder do bando, cede ao dinheiro. E ameaça os retirantes famintos para proteger os homens de bem da cidade.

O não-pertencimento desse homem é de tal natureza que ele consegue separar-se da realidade, desacreditar daquilo que vive, notar que há tanto absurdo nessa existência (a vida dele ou a vida de outras pessoas?) que só pode ser teatro. Cinema. E então, por uns instantes, o Nordeste Sangrento se revela como representação de si mesmo. A realidade seca, dura, brusca se dá conta de sua natureza. E parece tão distante da suposta civilidade metropolitana que só pode ser o sonho de um homem morrendo. Um sonho criado para para que pessoas civilizadas pudessem sonhar acordadas, no conforto de seus lares, e refletissem, através desse material onírico, sobre uma realidade que está logo ali, do lado de fora da janela. Talvez não com um jagunço matando retirantes, mas com policiais matando gente inocente. Talvez não com um capitão de bando aceitando dinheiro para defender interesses dos comerciantes locais, mas com governantes lavando dinheiro, agindo em torno de milícias e favorecendo endinheirados poderosos em troca de poder.

O fim violento da vida de Antão traz uma constatação de domínio da morte sobre essa Sertânia chamada Brasil. E não me refiro à morte como “destino de todos“, mas à morte como “projeto de poucos“. A morte pelo fogo de uma ideologia que o Estado condena. A morte de uma utopia local com cara messiânica e salvadora. A morte por fome e sede. A morte daqueles taxados como desordeiros, problemáticos. A constatação de que a morte comanda o Brasil. A Morte Comanda o Canganço. A morte comanda Sertânia. E talvez isso tudo seja apenas um loop febril e indignado dos últimos momentos da vida de alguém que lutou por muitas causas e nunca se encontrou. Mas sentiu. Acreditou. Procurou respostas (“Mãe, o pai morreu?“). Clamou por misericórdia (“Não atire, Capitão! O Povo não tem culpa de passar fome!“). E no fim das contas, só queria se encontrar. Voltar para casa. Desgraça!

Sertânia (Brasil, 2019)
Direção: Geraldo Sarno
Roteiro: Geraldo Sarno
Elenco: Vertin Moura, Julio Adrião, Lourinelson Vladmir, Igor de Carvalho, Gilsérgio Botelho, Kécia do Prado, Edgard Navarro, Isa Mei, Marcelo Cordeiro, Rogério Leandro, Marcos Duarte e Teófilo Gobira
Duração: 97 min.

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