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Crítica | Sexo, Mentiras e Videotape

por Luiz Santiago
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Sexo, Mentiras e Videotape marcou não somente a estreia de Steven Soderbergh na direção de longas metragens, como também a época em que foi produzido. O filme vai por um caminho contrário à fuga da realidade através da mágica do cinema — que então se cultivava no final de anos 80 –, com todas as suas reformulações estéticas, técnicas e, principalmente, com a tendência de distanciamento do indivíduo em relação ao seu mundo, como se fosse ideal distanciar-se da realidade o máximo possível e estruturar um mundo de sonhos, fantasias e dificuldades que se resolveriam de pronto.

Soderbergh não pensava assim. Para o diretor e roteirista, o mundo era uma imagem falsa de sua verdadeira realidade, e isso precisava vir à tona de alguma forma. O roteiro de Sexo, Mentiras e Videotape não é apenas a história de uma família composta por um advogado mentiroso e adúltero, uma esposa frígida e uma irmã/cunhada sem escrúpulos, ou, como era chamada por sua irmã, “extrovertida”. O texto alfineta a sociedade como um todo e não apenas a sociedade oitentista, mas a civilização pós-Segunda Guerra, onde o comportamento público se tornou uma neurose de retidão pessoal a ser exibida e cultuada, enquanto às escondidas, deixava-se toda a sorte de mentiras e crimes proliferarem.

Esse mesmo formato comportamental se estendeu através as décadas e, cada vez mais, encontra lugar nas novas gerações, o que mantém o roteiro de Soderbergh atual desde o momento em que foi lançado.

Com a volta de Graham à sua cidade natal, percebemos a oposição de duas realidades. Primeiro, a de um jovem que não tem emprego, vive com seu carro de lugar em lugar, sem moradia, sem telefone; e segundo, a da família bem sucedida, com conceitos elevados de moda, boas maneiras, ética e moral. Só que essa segunda parte está mentindo descaradamente. É verdade que as condições externas são mantidas, mas a aparente felicidade e lealdade não existem. Em seu lugar, um antro de engano, fingimento e neurose tomam a maior parte do tempo das pessoas, que gastam uma enorme quantidade de energia psíquica para esconderem quem realmente são.

O que mais nos chama a atenção é que Soderbergh não condena nem um lado nem outro. Todos são imperfeitos e possuem problemas graves em suas vidas, que afetam bastante sua composição psicológica. A diferença entre os dois lados é que um deles não se envergonha do que faz, do que sente e do que gosta. Aí enquadramos a personagem de Graham e Cynthia, a irmã extrovertida. Por outro lado, John e Ann vivem em um casamento de aparências, onde a frigidez dela é levada com notável naturalidade por ele, que por sua vez se mostra cada vez mais distante e vago com a esposa.

Como a direção de arte se empenhou em construir com bastante ênfase os elementos internos das casas e escritório onde as cenas acontecem, podemos entender muito mais Sexo, Mentiras e Videotape como uma análise pessoal, interna, íntima do que uma visão imediata do mundo geral. Isso não contradiz o fato de que a obra em si é um retrato da sociedade que se comporta daquele jeito, mas a abordagem para este comportamento é íntima, quase como uma confissão. E melhor ainda: é por intermédio do vídeo que a ligação entre intimidade e personagens se dá de maneira aberta – o que é irônico, porque o vídeo seria, por excelência, uma representação do real, mesmo quando sua intenção é documentar.

Sexo, Mentiras e Videotape usa de todo o aparato físico de uma família/comunidade para revelar verdades incômodas. Há até uma inversão de papéis, quando Ann pega a câmera e começa a perguntar coisas para Graham, atitude que visivelmente o deixa desconfortável mas que, no processo que o levou à quela situação, servirá para que se dispa de sua impotência e se junte a Ann, que junto com ele, sente a chuva cair (perceba a metáfora), algo que, segundo Graham, já estava “caindo há algum tempo“.

Mesmo que ache interessante essa inversão ao final, não creio que foi o melhor caminho a ser seguido pelo roteiro, único ponto negativo (e bem forte) que eu vejo no filme. Mas uma coisa é certa: Sexo, Mentiras e Videotape é uma dessas produções atemporais que dificilmente deixarão de fazer sentido, dada a capacidade quase vital do ser humano representar papéis (Camus dizia que o homem é a única criatura que se recusa a ser o que é) e por isso mesmo deve ser vista e revista de tempos e tempos, como um pequeno exercício de voyeurismo cinéfilo. E tal como o convite mudo feito pelo diretor e roteirista, um olhar para o que está atrás de nossas próprias máscaras.

Sexo, Mentiras e Videotape (Sex, Lies, and Videotape) – EUA, 1989
Direção: Steven Soderbergh
Roteiro: Steven Soderbergh
Elenco: James Spader, Andie MacDowell, Peter Gallagher, Laura San Giacomo, Ron Vawter, Steven Brill, Alexandra Root, Earl T. Taylor, David Foil
Duração: 100 min.

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