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Crítica | She Dies Tomorrow

por Ritter Fan
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Amy Seimetz é certamente mais conhecida como atriz, mas suas aventuras na direção merecem nota. Seu segundo longa, She Dies Tomorrow, que vem oito anos depois de Sun Don’t Shine e que ela financiou em parte com seu cachê em Cemitério Maldito, traz Kate Lyn Sheil novamente ao protagonismo e ratifica sua abordagem indie e pegada mais “cabeça” que decididamente desagradará muita gente. E compreensivelmente, pois a diretora e roteirista não tem muito interesse em responder nenhuma das perguntas que faz e nem de seguir a estrutura convencional de filmes. Quem conseguir ultrapassar essas barreiras, que desde já admito serem difíceis de ultrapassar, terá uma surpresa, algo amplificado por este talvez ser o melhor filme sobre a pandemia de 2020 dentre todos os filmes que inevitavelmente serão produzidos sobre o assunto, mas sem ser sobre a pandemia de 2020.

Não entendeu? Simples: She Dies Tomorrow foi produzido antes de a pandemia ser sequer um rumor, mas sua temática encaixa-se lírica e lindamente dentro da situação que o mundo passa no momento de seu lançamento e redação da presente crítica. E não, o longa não trata de pandemias, mas sim de um sentimento, uma crise, uma verdadeira premonição que Amy (Lyn Sheil) tem: ela tem certeza de que morrerá amanhã. E, mais do que isso, essa certeza contagia todos com quem ela tem contato, com o filme, então, abordando as reações dos personagens em relação a essa terrível realização.

De Amy apenas sabemos que ela é uma alcoólatra em remissão que acabou de comprar uma casa. Entre caixas variadas e móveis espartanos, a jovem tem uma epifania representada por flashes coloridos de luz que trazem a conclusão sobre sua morte amanhã. Como e quando exatamente não interessa à narrativa. O que realmente importa é o retorno de Amy à bebida e a maneira como ela passa a encarar o pouco tempo que ela acha que tem. Jane (Jane Adams), aparentemente sua melhor amiga, é a segunda a ser contaminada, tendo seu momento de claridade em seu porão escuro onde tira fotografias de reações invisíveis ao olho nu que captura por intermédio de um microscópio. Seimetz não tem pudor algum de usar linguagem de filme de horror para lidar com Jane, conseguindo efetivamente tirar sustos quase que literalmente do nada.

Na verdade, não são sustos. É um sentimento de ansiedade, de claustrofobia, de falta de saída que os close-ups extremos que a diretora usa com elegância estabelecem logo de saída, algo que é amplificado pela quase onipresença de “Requiém”, a última composição de Mozart, mais especificamente a poderosa parte da Lacrimosa, conforme arranjo dos Mondo Boys, que toca em loop diegético em determinados momentos. Aliás, a metaforização da morte é uma constante na obra, com folhas mortas no jardim de Amy, sua menção à “madeira morta” usada como tábuas em seu chão, lembrança de um aborto e assim por diante, ainda que por vezes a repetição acabe resultando em duplicação de esforços, por assim dizer, quase que uma reiteração do óbvio.

She Dies Tomorrow conversa bem com o que poderia ser classificado talvez como paranoia, ansiedade e até mesmo depressão, sem que necessariamente os aspectos clinicamente corretos dessas condições sejam expostos. Afinal, todos nós vamos morrer amanhã, não é mesmo? Não necessariamente o amanhã amanhã, mas algum amanhã certamente e a internalização dessa realização não é fácil. Além disso, a morte é o extremo e o filme também pode ser visto para além desse sentimento mais, digamos, radical, aplicando-se a trivialidades – ou semblantes de trivialidades, pois certamente não é assim para quem as sente – do dia-a-dia, desde um bloqueio criativo, passando por uma sensação ruim que não podemos imediatamente explicar ou entender e chegando até mesmo em um sensação de que as paredes estão fechando ao nosso redor.

Mas é inevitável a tentativa de se encaixar uma obra de arte no tempo presente e a já citada e onipresente pandemia é uma conexão inescapável, mesmo que o filme não tenha sido produzido com essa intenção, ainda que isto revele uma bizarra e incômoda presciência por parte de Seimetz. Afinal, uma ameaça invisível e contagiosa nessa proporção sem dúvida afetará cada um de nós de maneira diferente e a sensação de paranoia que nos cerca é palpável, com a morte sendo uma possibilidade real em situações mais radicais. E, mesmo com exemplos variados e felizes de esforços comunitários mundo afora, a sensação de prevalência da individualidade sobre a coletividade é inegável, com reações egoístas que vão desde a compra em volume de bens de primeira necessidade, até o maior fechamento ao redor de nós mesmos, protegendo apenas o que é nosso, não importando o vizinho. E essa abordagem individualista do ser humano é outro aspecto saliente na criação de Seimetz, que procura estudar as reações de cada personagem que coloca na tela, a começar por Amy que parece afastar-se de tudo e de todos, passando por Jane que passa a andar como um zumbi em seu pijama floral, além de dois outros casais que tomam atitudes extremadas e desesperadoras.

Somo assim mesmo diante de uma situação sem saída? Como reagiríamos diante de certezas apocalípticas? E de onde vêm essas certezas? As perguntas abundam, as respostas inexistem, pois não é a proposta de Seimetz. Ela cria um filme contemplativo e enervante e sem dúvida sabe extrair excelentes atuações de Kate Lyn Sheil e Jane Adams, mas ela se recusa a entregar conclusões. Particularmente tenho problemas com a finalização abrupta da fita, mas essa é uma escolha pessoal da diretora e roteirista, pelo que consigo aceitá-la mesmo que com reticências, especialmente diante de todo o lirismo desesperador que vem antes.

She Dies Tomorrow dividirá opiniões e eu de certa forma não consigo deixar de concluir que não só esse é o objetivo de Seimetz, como também talvez  o filme efetivamente mostre seu valor justamente aí, já que ele não faz concessões e não se amolda ao que comumente esperamos até mesmo de outros filmes indie de baixíssimo orçamento. Afinal, gostando ou não do longa, e admitindo isso ou não, ele provavelmente marcará seu lugar na mente de cada um de nós, seja pela surpresa presciente de sua narrativa, seja pela forma como aborda o psicológico ou pela frustração que ele pode gerar, frustração essa que talvez seja partilhada por Amy…

She Dies Tomorrow (EUA, 07 de agosto de 2020)
Direção: Amy Seimetz
Roteiro: Amy Seimetz
Elenco: Kate Lyn Sheil, Jane Adams, Kentucker Audley, Katie Aselton, Chris Messina, Tunde Adebimpe, Jennifer Kim, Olivia Taylor Dudley, Josh Lucas, Michelle Rodriguez, Adam Wingard, Madison Calderon
Duração: 86 min.

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