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Crítica | She-Ra e as Princesas do Poder (2018) – 1ª Temporada

por Ritter Fan
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Como é muito bem abordado na 1ª temporada da sensacional série documental Brinquedos Que Marcam Época, He-Man e os Mestres do Universo foi uma linha de brinquedos de ascensão meteórica graças à então bem-sucedida estratégia – já usada em outras ocasiões – de se criar uma animação para atiçar o imaginário das crianças e fazê-las implorar a seus pais a aquisição de bonecos (ops, figuras de ação!), veículos e castelos desse universo mágico inspirado em Conan, o Bárbaro. Lançado em 1983 e continuando até 1985, com nada menos do que 130 episódios (em duas temporadas), a série animada gerou um spin-off em 1985 que introduzia outro planeta e outra linha de personagens baseado no retcon que afirmava que o príncipe Adam tinha uma irmã gêmea, a princesa Adora, que fora sequestrada logo depois de nascer pelo vilão Hordak, cujo principal pupilo era ninguém menos do que o próprio Esqueleto. Nascia, então, She-Ra: Princesa do Poder (poucos sabem, mas ela é co-criação de ninguém menos do que do versátil J. Michael Straczynski, que também se envolvera com He-Man), que duraria até 1986, com 93 episódios em duas temporadas, série obviamente imaginada para ser o He-Man para meninas.

He-Man teve outras duas séries animadas, uma tecnicamente em continuidade com a série original, apesar de ser completamente diferente e que teve vida até longeva, com 60 episódios ao longo de 1990 e batizada de As Novas Aventuras de He-Man e a outra, doze anos depois, um reboot muito similar ao original que sobreviveu até 2004, mas com apenas 39 episódios. She-Ra, porém, permaneceu no vácuo por mais de 30 anos depois do fim de sua série, ganhando um reboot somente agora, em 2018, pela DreamWorks Animation Television, a mesma produtora responsável por trazer Voltron de volta, também pelo Netflix. Capitaneada por Noelle Stevenson, autora de quadrinhos assim como Straczynski (Nimona, Lumberjanes, os Fugitivos, dentre outros), a repaginada na personagem oitentista é contemporânea, mas sem perder a essência da série original.

Em linhas gerais, a mitologia da personagem é mantida quase que integralmente. Adora (Aimee Carrero), uma capitã da guarda do vilanesco Hordak (Keston John), tem seus olhos abertos para o mal que ele inflige ao planeta Etérea e, ao descobrir uma misteriosa espada mágica, transforma-se na super-poderosa princesa She-Ra, passando a lutar ao lado do bem, notadamente com a princesa Cintilante (Karen Fukuhara) e do guerreiro Arqueiro (Marcus Scribner). O que obviamente foi retirado de sua origem é sua conexão com He-Man, já que a série se sustenta sozinha. Inteligentemente, porém, Stevenson não nega a possível existência de He-Man, inclusive mantendo as menções a Grayskull (na frase de transformação “pela honra de Grayskull”) e Eternia (aqui e ali, como parte da mitologia dos chamados Primeiros, povo misterioso que colonizara Etérea há milênios) que, apesar de ficarem aleatórias até o fim, não atrapalham de verdade a história e até apresentam mistérios a serem resolvidos em temporadas futuras. Em outras palavras, aos puristas, calma, pois Adora ainda pode ser a irmã de Adam. E, se acabar não sendo, isso não é motivo para vocês cometerem seppuku.

E as mudanças visuais nos personagens também não, pois também nesse quesito a reimaginação da showrunner funciona bem. Estão presentes toda a iconografia original e toda a simbologia dos personagens, incluindo – e talvez especialmente – seus uniformes. Sim, She-Ra usa um short de ginástica por baixo da saia e muita gente pode querer bater a cabeça na parede por causa disso. De minha parte, só peço que escolham uma parede bem dura e rugosa para machucar de verdade (e/ou leiam esse artigo aqui). Afinal, essa mudança estética, apesar de não ser a coisa mais necessária do mundo (qual é o problema de She-Ra mostrar as pernas?), é um detalhe insignificante no todo.

O que é mais significativo é que os personagens, em sua maioria, são adolescentes ou adultos muito jovens, mais jovens em aparência do que na animação original. Essa parece ser uma irritante tendência geral, já que, nos quadrinhos, até personagens que eram para ter mais de 40 anos de idade parecem, hoje em dia, adolescentes impúberes (vide Tony Stark só para começo de conversa), quase como se crianças fossem “adultofóbicas”. Independente disso, porém, o que é realmente bacana no design do reboot de She-Ra é que cada personagem tem seu tipo de corpo. Nada de pegar apenas uma forma de se desenhar determinado personagem e trocar o penteado e o uniforme para criar outro. Foi assim em He-Man e foi assim em She-Ra, mas a nova animação preocupa-se muito em criar verdadeiras e cuidadosas identidades visuais para todos. Nem todas as mulheres são Barbies e nem todos os homens são fisiculturistas. Aliás, a grande verdade é que ninguém é assim, nem mesmo Adora que, apesar de ser muito parecida com sua versão dos anos 80, tem traços mais humanizados. Cintilante, por sua vez, é mais baixinha e gordinha e Arqueiro é um jovem com diâmetro de bíceps normal. E, mais bacana ainda, Adora, quando se transforma em She-Ra, torna-se uma mulher de dois (ou mais) metros de altura, que se destaca de todos à sua volta, algo raro de vermos em animações, especialmente com protagonista feminina.

Em termos de recriação de cenários, vemos o mesmo contraste original, com o lado de Hordak (aliás, excelente repaginada visual neste personagem que quase não aparece) caminhando mais pelo lado cyberpunk, sombrio e pesado e o lado das princesas todo colorido e alegre. É maniqueísta até a raiz do cabelo e pessoalmente não gosto do quão genérica é a Floresta dos Sussurros (assim com era genéria no original, vale lembrar), mas faz parte de uma animação focada em um público ainda de tenra idade, ainda que a tentativa de se reunir um visual mágico e tecnológico simultaneamente (tecno-mágico?) seja muito interessante e bem bolada, com até mesmo a Espada da Proteção parecendo um chip de computador e o Castelo de Cristal uma versão “digital” da Fortaleza da Solidão do Superman de 1978 (Esperança da Luz, a I.A. de lá com voz de Morla Gorrondona, é a encarnação mais, digamos, realista, do Jor-El de Marlon Brando).

Talvez a grande modificação e a verdadeira melhor parte da temporada seja o detalhamento do relacionamento de Adora com Felina (AJ Michalka), sua colega de Horda. Para começar, Felina, no lugar de ser uma humana normal que se transforma em uma pantera roxa, agora é, basicamente, uma gata/tigresa/leoa antropomorfizada, com direito até a um olho de cada cor. Ambas cresceram juntas sob a tutelagem de Sombria (voz de Lorraine Toussaint – também otimamente repaginada) e sempre competiram entre si. Ou melhor, Felina sempre competiu com Adora, mesmo sem que Adora percebesse. Quando Adora abandona a Horda sem nem mesmo se despedir, Felina se ressente, mas também vê oportunidade de crescer, o que cria uma relação de amor e ódio entre ela e Adora que perdura ao longo de toda a temporada, com um subtexto bem discreto que dá a entender algo maior entre as duas do que só amizade, elemento mais concretamente visto no baile de formatura no castelo da princesa Gélida. Mas tudo fica apenas na sugestão.

Aliás, esse subtexto é algo muito bem feito e merece um destaque aqui. Sempre tive problemas com obras que jogam em nossa cara a questão da inclusão (seja ela qual for) e que se vendem dessa maneira. Claro que essa matéria – inclusão, representação – precisa ser abordada até que ela não seja mais “necessária”, mas uma coisa é abordar a questão de forma marretada na narrativa e outra, bem diferente, é trabalhá-lha organicamente, como parte natural de toda a contextualização. Os próprios formatos diferentes de corpos, que tratei mais acima já é uma bem-vinda maneira de se lidar com a questão, mas o lado LGBTQ da coisa, tão (bobamente) criticado em Voltron, ganha uma roupagem  que alguns paranoicos podem até ver como insidiosa, mas que não é, na verdade. As pequenas e discretas indicações – como é o caso da já citada sequência do baile, com Felina usando uma roupa mais masculina e fazendo para Scorpia, ex-princesa e agora vilã da Horda de aparência também mais masculinizada, além das princesas Netossa (Krystal Joy Brown) e Spinnerella (a própria Noelle Stevenson), que fazem pontas – serão somente detectadas por espetadores mais velhos. As crianças (e seus pais), tenho certeza, não verão nada para levantar as sobrancelhas ou para correr para as colinas em pavor.

Mas nem tudo funciona na temporada. Para começar, ela demora a engrenar de verdade, com os três primeiros episódios chegando às raias do cansativo para estabelecer uma relação de confiança entre Adora de um lado e Cintilante e Arqueiro de outro. Há, como o título bem indica, a tentativa de se dar importância a um grupo de princesas, com She-Ra sendo apenas uma delas. Mas, convenhamos que isso fica na tentativa. Ainda que vários capítulos sejam dedicados à arregimentar as princesas de Etéria debaixo de uma mesma causa, isso acaba ficando em segundo ou terceiro plano, levando àquele típico fechamento de temporada que é um grande e previsível clichê. E, como se isso não bastasse, as princesas em si são pouco inspiradas, a começar pela própria She-Ra, que ganha pouco desenvolvimento. Em sua “versão Adora”, a personagem é um pouco melhor, mas, mesmo assim, somente em oposição a Felina, essa sim uma personagem bem desenvolvida. Cintilante e Arqueiro são os típicos sidekicks histéricos e repetitivos. No quesito princesa, o único efetivo destaque é mesmo Mermista (Vella Lovell) a versão comicamente rabugenta da Pequena Sereia, pois a outra que ganha alguma projeção, Entrapta (Christine Woods), chega a ser tão chata quanto Cintilante. Outro problema que realmente incomoda é a saída e entrada de personagens na medida da conveniência do roteiro, como por exemplo a Madame Rizzo (Grey Griffin) que entra e sai sem que tenha uma função minimamente útil e Ventania, o cavalo transformado em unicórnio alado que, depois de ganhar asas e chifre, toma chá de sumiço para reaparecer no último episódio apenas como um deus ex machina falante (voz de Adam Ray). Talvez tenham sido episódios demais para história de menos, não sei, mas não foi uma jornada tranquila e sem momentos do tipo “cadê o botão do fast foward?” como se poderia esperar.

She-Ra e as Princesas do Poder é uma bela reimaginação (palavra que costuma me dar calafrios) da série original. Respeitosa com o material fonte, mas atualizando-a para os anos 2010, a nova Princesa do Poder mostra que não precisa de seu irmão bárbaro musculoso para ficar de pé e que sabe lidar com questões contemporâneas sem precisar alardeá-las aos quatro ventos. Há um futuro promissor para a defensora de Etérea, mesmo que suas amigas de título fiquem aquém do esperado (mas quem sabe não melhoram?).

She-Ra e as Princesas do Poder – 1ª Temporada (She-Ra and the Princesses of Power, EUA – 13 de novembro de 2018)
Desenvolvimento: Noelle Stevenson (com base em criação de  Larry DiTillio e J. Michael Straczynski)
Direção: Adam Henry, Jen Bennett, Stephanie Stine, Lianne Hughes
Roteiro: Noelle Stevenson, James Krieg, Josie Campbell, Sonja Warfield, Katherine Nolfi, Rich Burns
Elenco: Aimee Carrero, Karen Fukuhara, AJ Michalka, Marcus Scribner, Reshma Shetty, Lorraine Toussaint, Keston John, Lauren Ash, Christine Woods, Genesis Rodriguez, Jordan Fisher, Vella Lovell, Merit Leighton, Sandra Oh, Krystal Joy Brown, Noelle Stevenson, Morla Gorrondona, Grey Griffin, Adam Ray
Duração: 24 min. por episódio (13 episódios no total)

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