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Crítica | Shrek

por Davi Lima
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Exemplo…uh…ogros são como cebolas!

É praticamente inegável que Shrek é uma obra debochada. Desde a primeira cena, usando a folha de um livro de conto de fadas para provavelmente limpar a bunda, pelo contexto que ele estava lendo no banheiro e dar descarga, o filme da Dreamworks incita uma desconstrução de uma narrativa clássica, contada nas páginas do livro. A ideia do príncipe que salva a princesa em um castelo, em uma torre bem alta, protegida por um dragão, é toda a construção de uma jornada heroica medieval, fantasiosa e mitológica. Porém, a proposta do deboche não se consta apenas na sátira, como em geral delimitam o filme, e sim legitimar a pluralidade dessa narrativa dos contos de fadas, variando as aparências das personas que estruturam a história, e fazendo um paradoxo em processo de harmonia. Em poucas palavras, se há uma desconstrução há também uma construção pelo processo de interpelo, fundando um deboche clássico/romântico, um romance clássico debochado, uma atemporalidade pós-moderna.

Esse processo dentro do filme parte de ideias bem singelas, de bases clássicas de identificação de histórias, ícones, símbolos e mitos eufemizados que vão se desconstruindo em piadas realistas. Há uma plausibilidade dentro do universo de Shrek que dentro dele, em si, as deformações da narrativa clássica não tem pretensão de expor inteligência, e sim de expor simultaneamente a graça de evidenciar do porque as narrativas clássicas ainda são contadas. A potência do singelo está nessa proposta, pois quando Fiona (Cameron Diaz) verbaliza as regras do cavalheirismo, dos mitos medievais que foram construídos para a sociedade ocidental moderna, Shrek (Mike Myers) apenas corresponde, em ações ordinárias, como fugir do perigo e limpar a cara com um lenço dado a ele por ela, como qualquer ser humano comum faria. Essas representações debocham de uma estrutura maior estabelecida na mente do espectador, mas quando ela é dita em tela, a desconstrução se torna construção de identificação com Shrek e com essa nova narrativa contada no filme com meandros ainda clássicos.

O protagonista é o centro denso da história para agregar tanto a relação de verossimilhança com o espectador, num processo de imersão, como de debochar das construções sobre ele e do que se chama clássico. Embora isso se valha de uma construção escrita do personagem que cria antíteses favoráveis, em vista que o espectador se identifica com monstro já no processo de desenvolver o deboche automático com o clássico, a construção cinematográfica, a unidade estilística em volta do personagem define bem melhor o todo do filme. Não bastava apenas estabelecer um personagem carismático que em estereótipo é feio, como a denominação do termo ogro.

Assim, o desenvolvimento clipesco do início do filme com a música “All Star”, cantada pela banda Smash Mouth, além de introduzir o caráter pop do filme, projeta tanto o ordinário do ogro, feliz em seu pântano, como paraleliza o humor debochado de aldeões indo atacá-lo enquanto Shrek se prepara o jantar, que não envolve comer humanos aldeões. Esse paralelismo é a base do filme, sempre tratando seu humor e seu drama pelas construções visuais de proporções ou julgamentos de aparências. Até por isso o uso de músicas pops para passagens na história, sejam dramáticas ou cômicas, são de natureza artificial para que a estranheza seja acostumada, no mesmo processo de desconstrução e construção que vai legitimando o clássico sem abrir mão do deboche.

O filme em si utiliza sua mise-en-scène – a chamada unidade estilística da linguagem cinematográfica do filme – como harmonia para construir um clássico do século XXI, moderno e pós-moderno. Isso por compreender que as estruturas da narrativas clássicas são legítimas como efeito no espectador de qualquer época, no entanto sendo necessário mais camadas, mais pluralidade de como essas regras, para se fazer um mito, podem ser ajustadas, como símbolos que permeiam qualquer contexto, ilimitados. O pôr do sol e a lua, por exemplo, delimitam o romance, mas em vez de haver um casal olhando para a luta há um burro e um ogro se aprofundando em seus dramas, e o pôr do sol até consta um casal, mas eles estão comento um churrasco de ratos. Esses dois momentos do filme representam bem como o deboche se entranha no clássico, com uma harmonia muito delicada, mas que os diretores Andrew Adamson e Vicky Jenson, utilizando o 3D das animações digitais, que permitem a suspensão de descrença mais ativa, conseguem sustentar do início ao fim.

Essa sustentação na história se vale por Shrek se tornar um herói para ele mesmo e Fiona, a princesa, ser salva pela ausência de fuga de quem ela é, ou seria, em prol do amor. Todos os conceitos são restabelecidos na própria antítese. Se fosse possível representar o filme com setas narrativas apenas uma não seria suficiente, pois os conflitos são abrangentes demais para que as decisões progressivas do filme sejam totalmente esclarecidas em uma direção linear. Essa pontuação não se vale pela clássica ideia de criatividade para não tornar a narrativa previsível. Na verdade, exatamente por legitimar a história clássica no próprio deboche, Shrek se torna bastante previsível em relação ao seu início. Porém, a graça é que isso é exposto, a brincadeira do filme não é se diferenciar como apoteose iconoclasta, e sim como o humor de Shrek, muito estratificado nele, representa um anseio da realidade de criar a própria história, de tornar o vermelho pintado da placa de “procura-se” ou “ameaça” em um batom, ao personagem beijar a imagem dele em certa cena. Shrek se coloca como uma figura pop independente dos aldeões, independente dos livros de conto de fadas definirem sua aparência como maldição. E junto a essa desconstrução, há a construção de que a beleza é mais abrangente. 

Do mesmo jeito que o Burro fala muito com Shrek, porque com os humanos ele não podia falar, numa inversão e aproximação da verossimilhança com a dublagem de Eddie Murphy, dentro do filme as representações cinematográficas, que aproximam a animação da realidade com planos que emulam uma fotografia prática, tornam os contextos supostamente heroicos em artifícios televisivos, mais próximo do público. O clipesco, já citado, é um exemplo, tratando especialmente de apresentação do personagem, do romance com Fiona e da jornada até o castelo para salvá-la, como um clipe de road movie. Mas há também cenas como a que Shrek luta com cavaleiros e soldados medievais no estilo WWE de luta livre, como uma farsa típica dessas lutas televisivas. Da mesma forma, o casamento que acontece no final do filme, assim como o espelho mágico, remontam, respectivamente, programas televisivos com plateia e reality show. Essas referências são mais que adornos, são na verdade inserções estilísticas que harmonizam com a atemporalidade que o filme almeja, construindo um universo de Shrek com contemporaneidade pop, que ao mesmo tempo permite que a narrativa agregue seu deboche e seu clássico em uma só narrativa. 

Enfim, Shrek é uma das grandes animações, que independente do seu teor tecnológico tenha ficado ultrapassado, em alguma renderização, ou lentidão do CGI, o efeito do filme parece perdurar como um verdadeiro filme clássico. A união das possibilidades da animação com narrativas singelas em potência, como a de Shrek, acabam por tornar os efeitos cinematográficos quase ilimitados, pelo trabalho elaborado com as construções sociais, fantasiosas e estruturais da mentalidade de uma cultura ocidental. Nesse sentido, o 3D do filme, que permite close-ups no rosto e no olhar dos personagens, permite transições de tempo visualmente complexas de montagem, e permite um delinear da paisagem com iluminação realista, acaba por ser fundido nesse efeito perseverante de uma história transformadora.

Pois quando o feio se torna bonito, não é porque o bonito deixou de ser bonito, e sim porque existe mais “boniteza” do que se imagina. Além disso, a profundidade e as camadas diferenciam mais as narrativas do que necessariamente mudar seus cursos. O conto de fadas pode existir, a suposta ideia dita conservadora do casamento, e toda a ladainha do beijo do amor verdadeiro, do príncipe, e princesa, não é negado por Shrek, o filme só mostra que ela pode ter e tem mais diversidade do que se imagina nos teleológicos contos de fadas que contam uma verdade, sim, sobre a realidade.

Shrek (Shrek) – EUA. 2001
Direção: Andrew Adamson, Vicky Jenson
Roteiro: Ted Elliott, Terry Rossio, Joe Stillman, Roger S.H. Schulman
Elenco: Mike Myers, Eddie Murphy, Cameron Diaz, John Lithgow, Vincent Cassel, Jim Cummings, Chris Miller, Cody Cameron, Conrad Vernon, Jacquie Barnbrook
Duração: 90 minutos

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