Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Simone (2002)

Crítica | Simone (2002)

Al Pacino numa trama com metalinguagem na era da cibercultura.

por Leonardo Campos
1,2K views

Durante a gravação de seu filme mais recente, o cineasta Viktor Taranski (Al Pacino) precisou lidar com uma estrela de cinema histérica e complicada. Além da postura mimada, a atriz também abandonou o projeto ainda em desenvolvimento. O resultado disso tudo é o que veremos em Simone, nome da atriz digital criada pelo diretor após receber um aplicativo de um grande admirador de seu trabalho. A criação desta “entidade virtual” para resolver os conflitos de bastidores parece dar conta dos problemas preambulares, mas o que fazer quando a mídia começa a endeusar a atriz desconhecida e a busca por sua nova musa se torna uma questão pontual para fotógrafos e demais jornalistas? Num mundo de ansiedades, tensões, curiosidade e culto das celebridades, as pessoas precisam conhecer a verdadeira Simone, acrônimo de Simulation One, o tal programa de criação da artista, situação que deixa o cineasta diante de acontecimentos nada agradáveis para a sua saúde física e mental. É uma diversão inteligente que nos lembra as excentricidades metalinguísticas do também humorado Dirigindo no Escuro, de Woody Allen, produzido no mesmo período, ambos sobre as dificuldades de se produzir cinema dentro de um esquema grande, envolto por produtores exigentes e celebridades chatas.

Esse é o mote de Simone, dirigido por Andrew Niccol, realizador competente também conhecido por O Terminal, O Preço do Amanhã, A Hospedeira, dentre outros filmes voltados aos debates sobre temas contemporâneos. Aqui, ele assume a direção do próprio roteiro, função também desenvolvida com talento em O Show de Truman e Gattaca – Experiência Genética. Ao longo dos 117 minutos da produção, situações engraçadas são mescladas aos diálogos com alguns pontos filosóficos sobre a atual era da realidade virtual, ainda em seu preâmbulo em 2002 e muito mais avançada quando lemos o filme hoje, duas décadas após o lançamento que no Brasil, ocorreu com mais de um ano de atraso e ainda teve recepção morna de parte da crítica pouco humorada. Como expõe Platão durante um trecho do alegórico Fedro, toda produção textual geralmente é parricida, uma criação rebelde aos domínios de seu criador (neste caso, autor), criatura considerada passível de louvores ou forte desprezo. Assim é Simone, criação que inicialmente resolve questões pontuais, mas depois coloca o diretor dentro de sua própria cilada.

Em determinado ponto, a celebridade virtual criada por Taranski questiona sobre a condição de sua privacidade na cultura das celebridades. Ela aponta que não é preciso que todo mundo saiba de seu passado, pois o “eu” que contemplamos na tela é bem diferente do “eu real”, subsídio para diversas discussões sobre a cibercultura e suas ressonâncias no comportamento humano em nossas sociedades. Em seu ensaio sobre debates acerca do sucesso e do culto ao Olimpo dos artistas, algo presente desde o cinema clássico na produção hollywoodiana, Simone também é um filme os discursos apocalípticos sobre a morte do real, comuns diante dos que refletem sobre a forte presença da virtualidade em nossas relações cotidianas. A trama também expõe a sua artista artificial como alguém inatingível, parte de um esquema de produção criado para ser complexo em suas engrenagens, isto é, criar algo que as pessoas não podem ter, mas que elas estão constantemente almejando se aproximar.

Em seu processo de metalinguagem interna, Simone foi realizado com o sigilo absoluto acerca da identidade de sua intérprete. É como se a jovem atriz não fosse real, tal como as situações apresentadas durante o filme. A canadense Rachel Roberts assinou contrato e manteve a sua imagem sob cuidados até a popularização da comédia dramática metalinguísticas que nos faz refletir sobre como funciona o sistema de produção cinematográfica em escala industrial, com grandes orçamentos e seres humanos de temperamento complicado. Ao brincar com a situação das celebridades, o personagem de Al Pacino fala diversas vezes sobre como a sua atriz virtual, manipulado de acordo com os seus interesses de gestor da programação, é tranquila, não faz exigências, colabora com o processo e sequer engorda. São falas aparentemente simples e diluídas em meio aos diversos acontecimentos engraçados do filme, mas que na verdade, ofertam reflexões bem importantes sobre a condição do cinema enquanto arte de massa, criada dentro de determinadas expectativas mercadológicas. Se a mídia é apontada costumeiramente como um simulacro, Simone (a personagem) é o simulacro do simulacro.

Mesmo em filmes banais, a atriz virtual prospera. Não há algo errado com o esquema industrial de produção? Esse é um questionamento que o filme traz, numa história que em seu desfecho considerado piegas por alguns, apresenta uma autoparódia muito bem realizada, mas não compreendida pela maioria. Dito isso, além dos elementos dramáticos que permitem um diálogo interessante em torno do filme, temos também as questões estéticas que precisam ser apontadas. Na condução musical, Carter Burwell entrega uma textura percussiva envolvente, em diálogo com as experiências vivenciadas pelos personagens ao longo da história. Em seu design de produção, Simone apresenta um cuidadoso trabalho de Jan Roefls, responsável por criar um espaço cenográfico devidamente dirigido artisticamente, com elementos que nos remetem aos dois principais tópicos do filme, isto é, o mundo do cinema e seus apetrechos de produção, e a realidade virtual, contemplada em telas de computadores e outros suportes de veiculação da imagem desta artista artificial que cria as maiores confusões na vida do protagonista interpretado pelo sempre competente Al Pacino, contemplado com pompa pela direção de fotografia de Edward Lanchman. Ademais, Simone caminha muito bem em na primeira metade, caindo na previsibilidade em seu desfecho, pequeno desvio que ainda assim, não atrapalha o filme enquanto entretenimento, tampouco impede que a sua reflexão contextual seja realizada.

Simone (S1m0ne, EUA – 2002)
Direção: Andrew Niccol
Roteiro: Andrew Niccol
Com: Al Pacino, Catherine Keener, Evan Rachel Wood, Pruitt Taylor Vince, Jay Mohr
Duração: 117 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais