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Crítica | Síndrome de Caim

por Leonardo Campos
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Considerado um filme obscuro na carreira de Brian De Palma, Síndrome de Caim é uma daquelas produções que ganham público cativo com o avançar dos anos, tornando-se uma referência para determinados grupos ao circular por redutos que atualmente, valorizam a obra muito mais que a crítica de sua época de lançamento, 1992, período não muito feliz para o cineasta que tinha amargado algum tempo antes o fracassado A Fogueira das Vaidades, filme que também assinou a produção executiva. Com a série de desacertos demarcadores desta fase conturbada, nem mesmo o seu retorno ao palco de representação das tramas enraizadas com o extenso rizoma do legado de Alfred Hitchcock o ajudou a ganhar as graças do público e da crítica especializada. Ao retornar com o resgate de temas comuns ao seu estilo, isto é, as obsessões e demais patologias de ordem psicológica, juntamente com o seu famoso virtuosismo narrativo, o realizador entrega um filme bastante interessante e peculiar, talvez onírico e mirabolante demais para o que se produzia em termos de suspense na época. Ao longo dos 92 minutos da narrativa, passeamos por personagens e tramas sobrepostas, complexas, num texto também assinado pelo diretor.

O que é real e o que é imaginado em Síndrome de Caim? Essa é uma pergunta catalisadora das reflexões centrais do filme, mergulhado numa atmosfera mais sombria e onírica na primeira parte e com alguma dose de objetividade em sua segunda metade e desfecho. Basicamente, a história flerta com o mal-estar psicológico de Carter (John Lithgow), terapeuta especializado em atendimento ao público infantil. Ele é casado com Jenny (Lolita Dadovich), oncologista que desconfia que o marido utiliza a sua filha como objeto de estudo científico. O relacionamento não atravessa uma boa fase e a mulher um tanto desanimada acaba por reencontrar Jack Dante (Steven Bauer), homem atraente que se torna o seu amante. Ele é o marido de uma ex-paciente de Jenny que tinha câncer e o contato permite que ambos se entreguem aos seus desejos, sem sequer desconfiarem que Carter e algumas de suas personalidades já tinham feito a observação para agir posteriormente. Nisso, várias crianças nas redondezas começam a desaparecer, algo que faz a esposa desconfiar do comportamento estranho de seu marido. Esse é o primeiro bloco do filme, mais fantasmagórico, antecipador da segunda etapa, um pouco (quinho) mais objetiva.

Como mencionado, a sua primeira parte é atordoante, pois não conseguimos diferir com exatidão o que é sonho e o que é realidade. O roteiro de Síndrome de Caim se preocupa, então, com emular a mente perturbada do personagem e conectar tudo isso com o desenvolvimento narrativo do próprio filme. Qual a personalidade que está em ação na cena X? E na passagem Y? Mas e no desenvolvimento de trecho da cena Z? São questões não fechadas e com possibilidades analíticas diversificadas. É neste ponto que a direção e roteiro de Brian De Palma encontram algum conforto narrativo ao ter Robert Dalva, Paul Hirsch e Bonnie Koehler na montagem e finalização do material, menos confuso do que poderia ter se tornado caso o projeto original tivesse se mantido. As cenas mais turbulentas ganham impacto com a supervisão de Robbie Knott nos efeitos especiais, setor que manipula vários tipos de clichês para permitir que a história funcione dentro dos esquemas burlescos do cineasta que investe em trovões, relâmpagos, chuva, névoas e outros recursos de representação da natureza para estabelecimento da atmosfera de mistério repleta de reviravoltas e descobertas que pedem alguma suspensão da descrença.

Além dos efeitos especiais, obviamente, outros setores funcionam em prol do virtuosismo narrativo, afinal, estamos a refletir sobre o cinema de Brian De Palma, não é mesmo? Por isso, não podemos esperar menos. A cena do interrogatório com a Dra. Waldheim (Frances Sternhagen) é uma das mais comentadas quando o filme é mencionado em alguma análise ou evento sobre cinema e, claro, sobre a produção deste discípulo de Hitchcock, cineasta que tal como De Palma, muitas vezes tinham uma argumento pouco significante, mas ganhava projeção por saber desenvolver o material com muita destreza e “volúpia artística”. O design de produção e a trilha sonora, assinados por Doug Kraner e Pino Donaggio, respectivamente, entregam material coeso para a constituição da atmosfera de constante suspense em Síndrome de Caim. Os figurinos de Bobbie Read também colaboram com o trabalho, ao trajar adequadamente os personagens diante de seus perfis e necessidades dramáticas. O maior destaque, no entanto, vai para a direção de fotografia de Stephen H. Burum, setor narrativo que expõe ao espectador o esmero estético do cineasta no desenvolvimento da saga psicológica de Carter.

Os planos, quadros e movimentos são milimetricamente calculados para a criação de uma atmosfera cheia de momentos de uma virtuosidade narrativa incrível. É a forma sendo superior ao conteúdo, tamanha a maneira como o diretor de fotografia, sob o comando do cineasta, trabalha ângulos tradicionais para expor personagens em posição de superioridade entre si, além do uso de plano-sequência, em especial, na cena de chegada da terapeuta que interrogará Carter e suas múltiplas personalidades, uma passagem que demonstra a criatividade hedionda do realizador na criação de rimas visuais que deflagram a labiríntica jornada que envolve os crimes perpetrados por Carter enquanto Cain, Margo, dentre outras personalidades oriundas de seu transtorno. O uso de lentes de foco duplo e a profundidade de campo diferenciada para determinados personagens ajuda o filme na criação de conexões entre objetos simbólicos e sentimentos interligados, escolhas narrativas já bem trabalhadas antes nos ótimos exercícios da linguagem cinematográfica realizados por Brian De Palma, em especial, Carrie – A Estranha, Vestida Para Matar e Dublê de Corpo, todos tributários de Alfred Hitchcock no quesito metalinguagem.

Será com Psicose, no entanto, que Síndrome de Caim terá traços mais imbricados. É, mais uma vez, a obsessão do cineasta pelo mestre do suspense, algo constante em toda a sua carreira. Distúrbio de personalidade, a identidade do assassino e a morte de uma referência familiar forte no processo formativo do protagonista estão entre alguns dos temas que permitem as associações entre as produções. Ao demonstrar fascínio pela tradição e estabelece-la em suas narrativas, Brian De Palma, diferente do que muitos desavisados escrevem sem ao menos observar de maneira mais abrangente o seu trabalho, não é o diretor de cinema do plágio, ao contrário, ele lê e ressignifica as suas referências, habilidade que o torna um dos melhores realizadores de sua geração. Ele evita qualquer sutileza e ao colocar as mãos na metalinguagem, deixa muito claro para o público de onde extraiu as suas menções artísticas. A cena em que joga o carro no lago com a esposa dentro é puro Norman Bates em Psicose, exatamente no momento em que o esquizofrênico esconde as evidências do assassinato de Marion Crane no chuveiro ao jogar o seu automóvel dentro de um pântano.

É um trecho de tensão pois em ambas as produções, o carro empaca um pouco e demora para ser deglutido pelo lago/pântano que o puxa para dentro, tática dos psicopatas para esconder as evidências de seus crimes hediondos. Outro detalhe que emula Alfred Hitchcock é a explicação didática da personagem de Frances Sternhagen para os policiais. Ela entra em detalhes e nos faz lembrar as explicitações sobre o comportamento de Norman Bates no desfecho de Psicose. Assim, ao passo que o filme avança, vamos descobrindo as situações que explicam a estranheza no comportamento peculiar de Carter, homem acometido por distúrbios psicológicos causados pelos experimentos de seu pai, Dr. Nik, também interpretado por John Lithgow, surpreendentemente diferente, num desempenho dramático camaleônico. Saberemos que ele comprova bebês para experimentos e teria utilizado o próprio filho para entender as suas teorias, algo que provavelmente o tornou um “desajustado”. Sumido após um suposto suicídio, Dr. Nik ainda é presença firme na trajetória psicológica do filho, tal como a Sra. Bates, no já mencionado Psicose, adaptação do romance homônimo de Robert Bloch que é uma constante no cinema de Brian De Palma, o cineasta da ausência de sutilezas e do esmero estético.

Síndrome de Caim (Raising Cain) — EUA, 1992
Direção: Brian De Palma
Roteiro: Brian De Palma
Elenco: Amanda Pombo, Barton Heyman, Carolyn Morrell, Ed Hooks, Frances Sternhagen, Gabrielle Carteris, Gregg Henry, James Van Harper, Jim Johnson, John Lithgow, Karen Kahn, Kathleen Callan, Lolita Davidovich, Mary Uhland, Mel Harris, Noe Montoya, Riq Boogie Espinoza, Scott Townley, Steve Schill, Steven Bauer, Teri Austin, Tom Bower, W. Allen Taylor
Duração: 95 min.

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