Número de temporadas: 04
Número de episódios: 93
Período de exibição: 13 de setembro de 1977 até 20 de abril de 1981
Há continuação ou reboot?: Não, mas a produção ganhou um derivado chamado Benson.
XXXXXXXXX
Imagina minha surpresa ao esbarrar em Soap, uma sitcom esquecida que faz paródias de soap operas com extrema acidez e sem medo de soar absurda ou controversa, ainda mais para a época em que foi lançada, nos anos 70. O piloto de Soap é um dos episódios mais fascinantes da televisão americana aberta que tive o prazer de assistir, tanto que acabei devorando mais um pouco da primeira temporada. Mais do que apenas uma introdução a um elenco, o piloto é uma ruptura formal, um manifesto de metalinguagem e ousadia cômica que desafia o formato tradicional do humor televisivo. Criada por Susan Harris, responsável por As Super Gatas, a produção se apresenta, claro, como uma paródia das telenovelas, mas logo deixa claro que não se contenta em ridicularizá-las; quer reinventá-las. E faz isso ao transformar o absurdo melodramático em matéria-prima para um humor tão inteligente quanto bobo.
A abertura, com o narrador explicando didaticamente que “esta é a história de duas irmãs — Jessica Tate e Mary Campbell”, já estabelece o tom da série, em uma comédia que assume o artifício como parte da piada. A narração serve não só para situar o espectador, mas também para zombar da estrutura redundante das novelas, que explicam demais e sentem a necessidade de comentar o óbvio, tudo com uma trilha sonora irônica que acompanha as brigas sem noção e situações exageradas do episódio. O narrador, que descreve as ações e emoções dos personagens, cria um efeito duplo: funciona como guia, mas também como sarcasmo. A cada frase, ele reforça o exagero dos acontecimentos, transformando o que seria melodrama em sátira.
Desde os primeiros minutos, Soap demonstra um controle absoluto do caos. Harris apresenta duas famílias inteiras, os Tates e os Campbells, em um roteiro que alterna com precisão entre tramas absurdas, revelações escandalosas e piadas afiadas. É impressionante como, em apenas meia hora, o episódio consegue estabelecer cerca de uma dúzia de personagens distintos, cada um com traços definidos, sem que o ritmo despenque ou o humor se dilua. A série já nasce com uma clareza de voz rara, sabendo exatamente o que está fazendo. E o faz com uma ousadia impressionante para 1977. Em uma época em que a televisão americana ainda engatinhava na discussão de temas como infidelidade, impotência sexual, homossexualidade e corrupção familiar, Soap os coloca lado a lado e os transforma em combustível para uma comédia de costumes que beira o anárquico.
O contraste entre as duas irmãs é o eixo estrutural e simbólico do piloto. Jessica Tate (Katherine Helmond) é a representação caricatural da alta sociedade americana: elegante, fútil, completamente alheia à realidade e, ao mesmo tempo, devorada por seus próprios segredos. Mary Campbell (Cathryn Damon), em contrapartida, encarna a classe média trabalhadora, cercada por problemas reais e uma moralidade menos hipócrita. Essa divisão serve como espelho da América da época, marcada por tensões de classe e por um desejo de preservar a fachada da respeitabilidade. A genialidade de Harris está em não escolher um lado: ambas as famílias são igualmente disfuncionais, igualmente ridículas e igualmente humanas. O que as diferencia é apenas o verniz.
O elenco, já no piloto, está em perfeita harmonia. Robert Mandan é o retrato vivo do patriarca adúltero americano, com seu Chester Tate sendo uma coleção de vícios, inseguranças e charme canalha. Sua esposa Jessica, ao mesmo tempo ingênua e conivente, simboliza o autoengano como mecanismo de sobrevivência. Já Richard Mulligan, como Burt Campbell, oferece um contraponto perfeito: seu humor físico e nervoso cria o caos no núcleo mais proletário da narrativa, enquanto Ted Wass (Danny) e Billy Crystal (Jodie) trazem uma modernidade surpreendente para o elenco. O simples fato de o piloto introduzir abertamente um personagem gay (Jodie), em 1977, sem tratá-lo como piada cruel ou caricatura unidimensional, é excelente.
Há, também, uma inteligência formal em como o piloto constrói o ritmo narrativo. A montagem é veloz, mas jamais confusa. Cada diálogo é escrito com a cadência rápida e histriônica, em piadas rítmicas, cheias de interrupções e pausas dramáticas que lembram o timing teatral das screwball comedies dos anos 1930. O piloto se move com fluidez, quase como se dançasse entre as famílias, e os interiores são meio artificiais, quase caricatos, reforçando a sensação de que tudo se passa num mundo levemente deslocado da realidade (uma trilha sonora sarcástica acompanha tudo também, ajudando no tom). É uma estética que antecipa o que séries como Arrested Development e 30 Rock fariam décadas depois: um realismo absurdo, em que o espectador ri justamente porque acredita naquele exagero.
O personagem de Benson (Robert Guillaume), o mordaz mordomo dos Tates, é talvez o símbolo máximo da lucidez e do sarcasmo em meio à insanidade. Ele observa o colapso da família, servindo como comentarista interno da série. No piloto, Guillaume demonstra muito carisma e timing, e seu embate verbal com Chester é um dos pontos altos do episódio. Há uma ironia histórica nisso: o único personagem negro da série, relegado ao papel subalterno de mordomo, é também o mais consciente, o mais ético e o mais afrontoso. Harris, com um humor fino, inverte as hierarquias sociais e raciais do formato tradicional das sitcoms de famílias brancas.
Outra virtude notável do piloto é a coragem de apresentar múltiplas tramas paralelas e deixá-las em aberto, emulando o formato das soap operas genuínas. O episódio termina sem resolução, com diversas perguntas suspensas: quem está traindo quem, quem é o verdadeiro pai de quem, e quem será morto, com uma montagem final deliciosamente divertida. Cada situação é um gancho e uma promessa de mais absurdos por vir. A voz do narrador no encerramento sobre os “capítulos das próximas semanas” é o toque final de genialidade, em uma autoparódia do suspense artificial das novelas.
Visto hoje, o piloto de Soap ainda é incrivelmente moderno. Seu humor continua ágil, ácido e provocador. A obra desafia convenções, ri de si mesma e se permite um caos controlado que poucas séries contemporâneas arriscam. É um episódio que, em torno de meia hora, delineia um universo inteiro de mentiras, neuroses e vaidades. E, acima de tudo, é uma obra que entende o poder da televisão como espelho deformante: Soap ri daquilo que a TV ensinou o público a levar a sério. Sua ironia não é gratuita; é crítica, quase antropológica.
Em seu primeiro episódio, Soap já demonstra porque se tornaria uma das comédias mais influentes e controversas da história da televisão americana quando se dá uma olhada no legado da produção. A sátira é afiada, o elenco é impecável e o roteiro de Susan Harris equilibra paródia e observação social com maestria. Tudo aqui funciona como engrenagem: o exagero melodramático, o comentário metalinguístico e o humor de caráter. Entre adultérios, assassinatos, culpas e segredos, Soap encontra a verdade mais simples de que nenhuma família é normal, e toda hipocrisia, cedo ou tarde, se transforma em piada, se aproveitando de todos os exageros possíveis de telenovelas para nos tirar gargalhadas.
Soap – 1X01: Pilot (EUA, 13 de setembro de 1977)
Criação: Susan Harris
Direção: Jay Sandrich
Roteiro: Susan Harris
Elenco: Robert Guillaume, Robert Mandan, Katherine Helmond, Diana Canova, Jennifer Salt, Jimmy Baio, Arthur Peterson Jr., Richard Mulligan, Cathryn Damon, Ted Wass, Billy Crystal, Robert Urich
Duração: 27 min.
