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Crítica | Sombras no Paraíso

por Fernando Campos
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Em 1986, o diretor finlandês Aki Kaurismäki deu início a uma sequência de obras chamada Trilogia do Proletariado, composta por filmes independentes em história, mas conectados tematicamente. Como o nome sugere, os longas trazem reflexões sobre a vida de trabalhadores “comuns”, desprezados dentro da pirâmide social, e colocados como peças descartáveis na sociedade. 

No capítulo inicial da trilogia, Sombras no Paraíso, Kaurismäki opta pelo romance para fazer comentários políticos, com pitadas de melancolia. O filme mostra a relação entre Nikander (Matti Pellonpää) e Ilona (Kati Outinen), um motorista de caminhão de lixo e uma caixa de supermercado que se apaixonam. Porém, a situação se complica quando ela rouba seu patrão após ser demitida e ele se envolve na morte de um colega.

Uma das características da trilogia, introduzida aqui, é o uso contido de diálogos. Várias cenas do longa são construídas utilizando apenas sons diegéticos ou trilha sonora, especialmente quando Nikander está em casa. Isso porque Kaurismäki busca retratar uma sociedade em que não há conexão entre as pessoas. Para o diretor, um sistema como o capitalismo, em que todas as vidas e empregos soam descartáveis (como o de Ilona), só é possível graças à falta de empatia geral. Dito isso, repare como, no início, o lixeiro não troca uma palavra com seu colega, que trabalha a anos com ele. O companheiro busca conversar, apenas, para fazer uma proposta de emprego. Ou seja, nesse sistema de exploração, as únicas relações que importam são as empregatícias 

Dentro da proposta de poucos diálogos, Kaurismäki constrói um competente esquema de cores. A vida e rotina de Nikander são mostrados, inicialmente, com uma atmosfera depressiva, com foco no azul e cinza, como o caminhão de lixo do rapaz. Além disso, as viagens do protagonista recolhendo lixo mostram uma Finlândia fria, nevada e suja, como se estivesse abandonada pelas pessoas. Contrapondo a isso, a primeira vez que surgem tons quentes na película é quando o lixeiro conhece Ilona, dentro de um mercado repleto de vermelho, como o uniforme dela, e prateleiras com diversidade de cores. Aliás, o apreço dele por ela surge não só pela atração física, mas por ser a primeira pessoa a demonstrar afeto, ajudando-o a cuidar de um corte na mão. Nesse caso, o sangue vermelho que jorra da mão do personagem não significa dor, mas sim do novo sentimento que surge dentro do lixeiro.

A partir disso, surge o romance entre os dois. No entanto, ao invés de vermos a vida do protagonista tornar-se mais “colorida”, observamos a moça mergulhar na melancolia. O vermelho da vestimenta da garota acaba substituído pelo amarelo. A iluminação do mercado é substituída pela escuridão da casa de Nikander. Porém, a grande sacada do longa, e o que torna a experiência diferente, é que não há reviravolta ao final, fugindo de um desfecho cichê. O arco aqui é o entendimento da mulher de que a vida não é florida como em propagandas de produtos. A redenção dela está em enxergar a tristeza da sociedade em que vive, que a exclui de certos confortos simplesmente por ter nascido humilde. Uma pena, porém, que dentro dessa dinâmica entre os dois personagens, o roteiro traga questões familiares do lixeiro, já no final, que são desnecessárias e servem apenas para desviar o foco, sendo um background inútil para o protagonista.

Na conclusão, entendemos que o romance apresentado em Sombras no Paraíso não está tanto no amor ou desejo. Propondo uma reflexão sobre o que significa o casamento dentro do capitalismo, vemos que buscamos estar com alguém porque é muito doloroso permanecer sozinho em um sistema estruturado na divisão social, em que alguns valem mais do que outros. No clímax, Ilona escolhe o lixeiro em vez do empresário porque ele entende a realidade dela. Os dois aprendem que são descartáveis naquele universo, sendo o protagonista literalmente um homem do lixo, como é chamado por uma amiga da garota, mas um para o outro podem servir como apoio e aconchego. Ao contrário de algumas abordagens românticas, Kaurismäki entende que abraçar a melancolia ajuda a entender o significado de uma relação verdadeira. Melhor melancólico do que indiferente.

Sombras no Paraíso (Varjoja paratiisissa) – Finlândia, 1986
Direção: Aki Kaurismäki
Roteiro: Aki Kaurismäki
Elenco: Matti Pellonpää, Kati Outinen, Sakari Kuosmanen, Esko Nikkari, Kylli Köngäs, Pekka Laiho, Jukka-Pekka Palo, Svante Korkiakoski, Mari Rantasila, Safka Pekkonen, Antti Ortamo, Mato Valtonen, Sakke Järvenpää, Ulla Kuosmanen, Neka Haapanen, Pentti Koski, Ari Korhonen, Teuvo Rissanen, Erkki Rissanen, Sirkka Silin, Marina Martinoff, Jussi Tiitinen, Riikka Kuosmanen, Aki Kaurismäki
Duração: 74 min.

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