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Crítica | Sonata de Tóquio (2008)

À beira do abismo.

por Fernando JG
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Em Sonata de Tóquio, Kiyoshi Kurosawa não está interessado em nada que não seja a exploração reveladora do real. É daí, de um drama que nos move, isto é, nos tira de um lugar e coloca imediatamente em outro, que o cineasta trabalha, operando com aspectos de um minimalismo silencioso para provocar uma espécie de efeito, incômodo e estranheza. Ao lidar com a simplicidade da realidade mais pura e verdadeira – servindo de espelho para a ficção, que a utiliza através de uma verossimilhança que mimetiza a objetividade do real de que se inspira – Kurosawa retorna à gênese primária do cinema, o objetivo primeiro desta arte burguesa: a impressão de realidade

O que nos surpreende é essa moldura que estabelece o realizador na construção de seu longa-metragem, cujo enfoque se dá na análise retratista de uma família de classe média em Tóquio. Com um toque de realismo, Kurosawa invade esse clã familiar para desintegrá-los sem piedade alguma, retirando as máscaras que escondem uma sociedade que teme a imperfeição, o erro e o fracasso. Sasaki (Teruyuki Kagawa) tem um emprego relativamente estável, dois filhos, Takashi Sasaki (Yū Koyanagi) e Kenji Sasaki (Kai Inowaki), e uma esposa empenhada em cuidar do lar, a senhorita Megumi (Kyōko Koizumi). Quando repentinamente o chefe da família é demitido, esse núcleo aparentemente estável começa a ruir vagarosamente mas numa constante dramática e destrutiva, abrindo um buraco abissal sob os seus pés. 

A película segue três estágios, ou índices, que ditam o ritmo dos fatos que se desenrolam. Se a calmaria é a característica mais imediata de um primeiro ato curtíssimo em duração, a crise que se aproxima marca, juntamente da negação da mesma, o segundo ato, carregado de surpresas, reviravoltas e assombro devido a dura realidade que entrega. O terceiro ato marca uma espécie de simbiose, com a aceitação da crise e do novo status: a vida continua mesmo com a desilusão – e amarra de maneira cínica o arco fílmico. Percebe-se, assim, que há um complexo roteiro a se trabalhar, de modo que o resultado final vinga para além da simples trama melancólica, revelando um abismo gerado no seio de um problema social de grande magnitude. Prisão e liberdade aparecem nos extremos de uma mesma linha narrativa. 

Estruturalmente, se desnuda no meio dessa intriga quase que um noir deslocado, refeito com base em problemas próprios do gênero dramático, isto é, observamos um jogo de mentiras, trapaças e descobertas, os quais, envoltos numa atmosfera de mistério, abrem caminho para um desvelar trágico e cruel da realidade. É, então, uma leitura crítica que Kurosawa faz da sociedade japonesa – cujo capitalismo atinge um grau máximo de atividade, refletindo portanto numa psicologia doentia de uma parcela sua população – e do sistema como um todo. É uma leitura do todo a partir de um trecho: figura metonímica. Esse filme é um apontamento a respeito da falha, quero dizer, de uma falha sistêmica. 

Quem falha, aqui, não é propriamente Sasaki, o protagonista demitido, mas todo o meio no qual está inserido, e que o faz ter vergonha da demissão, que o faz esconder de sua mulher o novo emprego como zelador, que leva o seu amigo, desempregado, ao suicídio, e que leva o filme às constantes citações da presença de mão de obra barata vinda da China. Por estar no meio do mais avançado capitalismo predatório, o cinema asiático tem apontado, com todas as forças, as contradições insuperáveis que compõem o entorno do mundo tal qual ele é, indicando não só os problemas de ordem material, mas enxergando, nesse embate do materialismo dialético, o sintoma psicológico que esse meio gera. 

A exigência de um roteiro como esse reclama um bom estudo de personagem e a boa feitura desses garante o sucesso da proposta realista bem como o aprofundamento do drama que caracteriza a crise familiar. Há uma boa divisão de tela para cada um, mesmo que não equivalente, mas o suficiente e sugestiva para que entremos na psicologia dos personagens que estão na trama principal. A angústia do fracasso de um pai de família que, provedor do sustento da casa, é demitido de seu emprego é o que corrói toda a estilística fílmica, chegando a níveis trágicos e insuportáveis de piedade. É através dele que compreendemos toda a fatalidade que o filme intenta colocar para nós. Outra peça fundamental e desenvolvida com base no silêncio é a matriarca, sendo ela que carrega o peso inaudito da crise. 

Entre tantos problemas, talvez o único personagem que consiga dar algum respiro e que não esteja evidentemente frustrado seja o filho mais novo, Kenji. O encerramento da película com a apresentação de Clair de Lune, de Claude Debussy, é o ponto alto do filme porque é representativo. Como uma vez fizera Ingmar Bergman em Sonata de Outono, ao retraduzir toda a complexidade de seu filme em apenas uma sequência musical do famoso Prelúdio Op. 28 nº 2 de Chopin naquela dramática cena entre Liv Ullmann e Ingrid Bergman, Kurosawa se vale de um mesmo artifício para arrebatar o público e transmitir afetos através da música.  A trilha sonora liga-se às últimas cenas em que a mãe, na praia, recebe um clarão solar vindo de uma perspectiva misteriosa. Sinal de renovação. Clair de Lune coloca-se no fechamento, coroando uma trama recheada de emoção, melancolia e desilusão, representando também um novo passo: a reconstrução sobre os escombros. 

Sensível no percurso mas destrutivo na ação, Kiyoshi Kurosawa desintegra uma família numa obra em que o realismo da estética fílmica é muito mais assombroso do que qualquer outro enredo de horror em que tenha trabalhado, colocando em evidência a dolorosa situação de desamparo, como um filho que, sem a mãe, não sabe o que fazer e então chora quando ela, por um momento, se afasta. Verossímil e em constante diálogo com a realidade na qual se espelha, Sonata de Tóquio te convida a experimentar a silente chegada de um apocalipse pessoal em que a estabilidade de uma vida moderna mostra-se frágil e então o drama surge, como num arroubo, da situação mais comum de todas, ao passo que a piedade e o medo que são evocados no decorrer do enredo tornam o longa-metragem universal por mexer com afetos a que pertencem a todos. Isto é, medo de que aquilo ocorra com a gente e piedade por julgarmos imerecido o sofrimento do personagem. Catarse melancólica porque suscita tristeza e não apenas o sentimento de injustiça. A simplicidade e o realismo concluem que o brilhante enredo de Tokyo Sonata já é um dos melhores dramas a respeito dos impasses da vida moderna e por isso tão próximo de nós.

Sonata de Tóquio (Tokyo Sonata, Japão, 2008)
Direção: Kiyoshi Kurosawa
Roteiro: Kiyoshi Kurosawa, Max Mannix, Sachiko Tanaka
Elenco: Teruyuki Kagawa, Yū Koyanagi, Kai Inowaki, Kyōko Koizumi, Haruka Igawa, Kanji Tsuda, Kōji Yakusho, Kazuya Kojima
Duração: 120 min.

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