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Crítica | Sono, de Haruki Murakami

por Luiz Santiago
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É o décimo sétimo dia em que não consigo dormir“. Eis a maneira que a narradora sem nome deste conto (alguns críticos e leitores também o classificam como novela) inicia o seu relato para o leitor. É um choque interesse que temos logo na primeira linha da obra. E de certa forma, um choque que traz à tona algo que muitos de nós temos, em fases ou ao longo de toda a vida: dificuldade para dormir. Mesmo para os bons dorminhocos, Sono traz alguns eventos bem marcantes e macabros, fazendo a obra imediatamente relacionável com todos, seja pela identificação, seja pela curiosidade.

Lançado em 1989, quando o diretor completava uma década de carreira, Sono nos faz reencontrar elementos da literatura de Haruki Murakami em um pequeno espaço de tempo, como o contato com livros, música ou gêneros musicais; narrativas de cunho surrealista ou fantasioso; indefinições ou plena abertura na reta final da obra. Se em produções maiores isso causa impacto no leitor, num conto de pouco mais de cem páginas, o resultado é ainda maior. Especialmente porque essa escolha interfere na estrutura com que o autor vinha guiando toda a narrativa. E, pelo menos para mim, isso foi um ponto negativo em termos de aproveitamento total do livro.

A introdução a esse Universo é simples e brilhante. A narradora compartilha conosco o incômodo pela falta de sono e primeiro nos faz tirar a insônia do campo de possibilidades. Ela já teve insônia e fala do momento em que isso aconteceu, anos atrás. O elemento medonho aqui aparece na narração sobre o dia em que “algo dentro dela foi modificado“.  A exposição do transe noturno, acompanhado de uma paralisia e a consequente impossibilidade que ela encontrou para dormir são coisas que ficaram vívidas na minha memória por vários dias. A visão do transe tem certa simplicidade mas é extremamente macabra, e isso é reforçado pelos sentimentos que a narradora diz que a atravessavam naquele momento, algo que, como uma espécie de ciclo, ensaia voltar no final, mas não temos certeza se o que acontece ali é de verdade ou se aquilo é mais um transe, talvez algo que irá destravar o que foi travado dentro dela numa certa noite, dias atrás.

As reflexões que a obra nos traz são ainda mais interessantes, porque partem de curiosidade ou saudade literária da protagonista (como a procura dela para reler Anna Kariênina ou livros acadêmicos sobre o sono) e tornam-se reflexões sobre a dinâmica da vida e o pós-vida. Ao refletir sobre o ato de dormir, a personagem nos faz pensar sobre aquilo que o sono traz e como isso ajuda a aquietar a nossa sensação de estarmos fazendo a mesma coisa todos os dias. E claro, a parte mais assustadora, que é a possibilidade dessa mesma dinâmica estender-se para o pós-vida. Seria a morte um eterno estado de vigília no escuro, onde não se tem nada para fazer, apenas… não-existir? O pensamento causa calafrios e é com esse tipo de pensamento que vemos essa mulher acordar para diversos aspectos da humanidade, pensando naquilo que nos faz ser quem somos.

A reta final da obra, no entanto, foi rapidamente caindo em uma poça de desconfiança para mim, de que o autor usaria elipses demais e terminaria, como é de praxe, com uma reticência dramática. Bem, pelo menos a segunda parte aconteceu. Já a passagem do tempo é relativamente fluída e não temos reais problemas para acompanhar a progressão da personagem até esta última cena em que a vemos. No entanto, toda a construção não dialogou comigo e, apesar de gostar da ideia desse final (como disse antes, a sugestão de um ciclo e a dubiedade em relação às figuras que queriam entrar no carro são coisas interessantes), para mim o desfecho ficou aquém do restante da obra, especialmente a primeira parte.

Sono nos traz um fato inacreditável causado por algo mais inacreditável ainda: o fato de alguém não dormir por vários dias e um transe extremamente macabro como causador do problema. É uma história sobre alguém que se dá conta de seu conformismo para com a vida, de sua rotina e do quanto ela estava mergulhada em padrões e ações mecânicas, mesmo não sendo afeita a esse tipo de comportamento. É claramente uma história sobre um despertar. E a possibilidade de se pagar um alto preço por isso.

Sono (Nemuri | 眠り) — Japão, 1989
Autor: Haruki Murakami
Editora original: Bungeishunjū (Bungakukai Magazine)
No Brasil: Editora Alfaguara (2015)
Tradução: Lica Hashimoto
118 páginas

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