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Crítica | Soul (Sem Spoilers)

por Iann Jeliel
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Isto não são propósitos. É só a vida normal. Soul 

É a confirmação de um processo que a Pixar já vinha tendo desde Toy Story 3, quando passou a transformar suas brincadeiras de universos inanimados em histórias cada vez mais pessoais. Falam muito do desgaste de sua “fórmula”, em que as premissas sempre colocavam seus personagens – os seres não vivos, humanizados – para voltarem ao aconchego do mundo que lhes pertencia, passando por um processo de amadurecimento no caminho. Mas a verdade é que essa fórmula é somente a base da receita de um bolo que hoje mudou de forma, e que bom que mudou, adquirindo um novo sabor, a meu ver, bem mais saboroso. A Pixar iniciou como um estúdio que testava os limites da tecnologia de animação 3D à frente de contar suas histórias, e hoje, com a máxima dessa tecnologia já como realidade, ela muda seu propósito, e não ironicamente, Soul falará justamente sobre isso: a não possibilidade da racionalização de um “propósito” que consta da criação do universo da vez.

Estruturalmente o filme irá vender a logística do mundo das almas de forma muito semelhante a outros longas da primeira fase do estúdio, tal como Monstros S.A, também dirigido por Pete Docter, buscando nos prender mais pelo senso de fascínio aos elementos no entorno do universo do que pela intimidade aos personagens que irá aparecendo somente conforme os desdobramentos narrativos. A diferença é que Soul reserva um tempo para instaurar uma base dramática íntima do protagonista no início, antes de mandá-lo interagir com o novo mundo. Aparentemente isso serve para promover a fórmula do “retorno para casa” quando o protagonista estivesse em forma de alma e precisasse correr contra o tempo para descobrir uma forma de voltar para sua vida normal, através de brechas das explicações sobre a funcionalidade do universo, antes que ele perdesse a aparente oportunidade da sua vida como músico.

Perceba que há um jogo de aparências aí. As brechas dadas para a troca entre corpos humanos e almas são calculadas para manter um mistério sobre a origem de uma função em específico não explicada na construção bem didática de universo. Essa que quando é revelada ressignifica todo esse didatismo de aparência racional ao abstrato – como normalmente a Pixar adota – e o converte para algo, literalmente, de mais alma, como vem sendo essa nova Pixar, mais íntima e emocional. Estamos falando de um ambiente que em nossa imaginação é primordialmente espiritual, ou seja, não explicativo, então a introdução formulaica para a subversão era necessária para a compreensão da temática ser universal a olhos infantis, afinal, a Pixar ainda tem como prioridade o público infantil, que conseguirá se divertir especialmente por essas brechas permitirem o exercício de imaginação.

A comédia entra como um elemento importante aí, e é algo que vem sendo característico do estúdio nessa nova fase, em que utiliza situações cômicas como sua base explicativa, tornando conceitualmente menos complicado de entender, mas não menos complexo. E funciona muito bem, não chega a ser tão engraçado, mas a comédia dá a leveza do ar rotineiro necessário para a virada de ressignificação ser sentida. Então, dá para dizer que Soul se explica no aberto, porque esta é nossa relação com o sobrenatural, um medo do desconhecido sobre essa noção de propósito da vida, se somos predestinados a fazer aquilo que vivemos desde sempre ou se adquirimos isso conforme a vivência. É nessa ambiguidade que as interações de Joe e 22 se sustentam, entre atritos e compaixões, cada um descobrirá para que lado essa jornada de busca do propósito irá levar, e aí Soul encontra sua alma e passa a entrar definitivamente no lado mais emocional e pessoal da coisa.

Nesse ponto, Docter não possui o mesmo domínio ou talvez honestidade que teve em Divertida Mente, ou que seus companheiros Lee Unkrich e Dan Scanlon tiveram nos respectivos Viva a Vida é uma Festa e Dois Irmãos. Há artifícios estruturais muito perceptíveis e manjados que levam essa construção a um lado mais apelativo da coisa, embora exista ainda uma sensibilidade surpreendente no tratamento musical das etapas de jornada. A brincadeirinha do título remetente ao estilo musical está intrínseca como complemento narrativo a todo momento. A trilha da dupla Atticus Ross & Trent Reznor possui ampla participação nesse processo comunicativo do filme e é talvez uma das composições mais versáteis que a Pixar já apresentou, sendo responsável inclusive para o roteiro nunca cair nesse território meloso artificial e transmitir sua ideia dentro daquele didatismo sensorial de forma mais efetiva para todos os públicos.

Em suma, Soul dessa nova fase intimista é talvez o título mais fraco do estúdio, mas não deixa de ser menos satisfatório, especialmente porque confirma essa sua nova identidade por meio de um processo bem aberto e didático, que questiona o propósito se assumindo em um novo, que não mais precisa se provar em um lado técnico da animação em 3D – que se ainda tem algo a evoluir, é muito pouco –, e sim no lado humano, no qual vem demonstrando cada vez mais que pode se superar a cada novo filme.

Soul (Idem | EUA, 2020)
Direção: Pete Docter, Kemp Powers
Roteiro: Pete Docter, Mike Jones, Kemp Powers
Elenco: Jamie Foxx, Tina Fey, Graham Norton, Rachel House, Alice Braga, Richard Ayoade, Phylicia Rashad, Donnell Rawlings, Questlove, Angela Bassett, Cora Champommie, Margo Hall, Daveed Diggs
Duração: 96 minutos

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