- Há spoilers.
Eu realmente não sei se O Sermão da Montanha, primeiro episódio da 27ª temporada de South Park, é hilário ou assustador. Ver Donald Trump transposto para a série exatamente como Saddam Hussein no longa South Park: Maior, Melhor e Sem Cortes, ou seja, com seu rosto real animado “no estilo canadense” e dividindo a cama com Satã devia ser engraçadíssimo, devia ser de chorar de rir, devia ser de dar câimbras estomacais, mas a minha primeira reação foi a mesma de Trey Parker em seu roteiro: imaginar que a série em breve será cancelada pela forma como o governo de Trump vêm usando a máquina estatal (ah, a ironia…) para subjugar todos que olham enviesados para ele. O Sermão da Montanha é, para todos os efeitos, um episódio destruidor da série que demonstra aquilo que Parker e Matt Stone sempre tiveram, ou seja, a coragem de desancar todos que eles acham que precisam desancar, sem dó, nem piedade, doa a quem doer. E ele é também engraçadíssimo se sua comicidade não ficasse em xeque pela operação da realidade.
Afinal, estamos em uma situação geopolítica mundial que é tão surreal, tão fora de esquadro, tão completamente louca, situação essa que ganha eco por legiões de lemingues em redes sociais, que o trabalho do comediante tornou-se muito mais complexo. Ver Trump comentar sobre cancelamento de programas de entrevistas em suas redes sociais, ameaçar todos os países, inclusive os aliados, com imposição de tarifas, sequestrar cidadãos americanos em situação ilegal e também legal em seu próprio país, suprimindo o processo legal, é material digno não de South Park, mas sim de The Handmaid’s Tale. Ou seja, se não dá mais para ser mais engraçado que a realidade, diria que estamos em um ponto em que a realidade deixou de ser engraçada e caçoar de sandices como as de Trump – e aqui estou me atendo ao presidente dos EUA, mas eu poderia falar de várias outras figuras políticas pelo mundo – deixou de ser a melhor maneira de lidar com isso. Mas não se enganem, pois não estou defendendo de forma alguma que as pessoas se calem, que os humoristas não mirem suas palavras para o que veem, mas sim apenas dizendo que o cômico ficou sério e incômodo demais para brincarmos, como se estivéssemos sapateando à beira de um abismo.
Pode ser que eu esteja sendo pessimista e alarmista em meus comentários e ficarei muito feliz se em algum tempo o que escrevi aqui possa ser efetivamente motivo de chacota por parte de vocês, leitores, mas, no momento, a coisa toda, para mim, é bem mais assustadora do que engraçada e, mesmo reconhecendo o valor do que Trey Parker fez em O Sermão da Montanha, indo bem além de parear Trump com Satã e entregando um episódio raivoso, que faz questão de esculhambar o presidente americano com seu pênis diminuto que tenta – e está conseguindo – impor suas vontades excludentes que rebobina décadas de avanços sociais, tenho dificuldade em bater o martelo sobre o que foi feito. Um aspecto, porém, fica evidente de imediato, que é a capacidade de concisão do roteiro em entregar de bandeja e de maneira muito clara o status quo insano em que vivemos. Parker não desperdiça palavras mesmo quando usa deep fake, ao final, para o anúncio pró-Trump que a cidade de South Park teve que produzir como parte do acordo com o presidente, ainda que seja um episódio monotemático que repete sua mensagem ad nauseam.
Escrevi muito e nem sequer disse sobre o que se trata o episódio para além de transformar Trump em alvo constante das piadas mais grosseiras e violentas – e por isso mesmo certeiras – em uma espécie de desopilação de fígado da dupla criativa que comanda a série e que passou por problemas muito recentes para colocar esse episódio no ar, problemas esses que, tenho certeza, vão bem além daquilo que foi divulgado na imprensa e que têm relação também com o fato de 2024 ter sido o primeiro ano desde o que começo da série que não houve uma nova temporada (ok, 2019 e 2020 também foram assim mesmo que uma temporada marota tenha sido considerada a partir de dois especiais). Mas o ponto é que a sinopse não importa, justamente por ser um trampolim para Parker, ainda que eu seja o primeiro a reconhecer que, em sua simplicidade, ela é brilhante: em um belo dia, o desbocado Eric Cartman percebe que o “wokismo” acabou, o que o leva ao desespero por não mais se considerar especial, o único que sempre foi “anti-woke”, que vivia para reclamar disso, com até mesmo PC Principal deixando de ser politicamente correto para abraçar Jesus Cristo em seu coração, com o messias aparecendo na escola para ajudar a catequisar as jovens mentes segundo a cartilha de Trump.
Não é uma premissa linda, por si só repleta de elementos para serem desempacotados? Pois ela sem dúvida é, mesmo que aqueles que deveriam se enxergar a verdade que existe dentro dela se recusem a assim o fazer. Eu gostaria de dizer que O Sermão da Montanha pode servir de instrumento para acordar quem dorme nessa tempestade e para ajudar os que parecem adorar a tempestade a perceber que até mesmo seu barco está afundando, mas a grande verdade é que parte do que vemos ao nosso redor só está aí justamente porque, na verdade, não vemos o que está ao nosso redor. No final das contas, se eu ri do episódio, foi de nervoso, o que é também o objetivo de obras humorísticas, claro. Quero só ver o que Parker e Stone têm programado para os capítulos seguintes, pois ser mais direto parece ser impossível. Isso se eles conseguirem chegar ao final da temporada, evidentemente…
South Park – 27X01: O Sermão da Montanha (South Park – 27X01: Sermon on the ‘Mount – EUA, 23 de julho de 2025
Direção: Trey Parker
Roteiro: Trey Parker
Elenco (vozes originais): Trey Parker, Matt Stone, April Stewart
Duração: 22 min.
