- Há spoilers.
Em seu episódio de Thanksgiving, a 28ª temporada de South Park entrega um dos raros capítulos de 2025 que é quase que integralmente passado na cidadezinha que dá nome à série, com uma Corrida do Peru patrocinada pela Arábia Saudita servindo de gatilho narrativo para Eric Cartman deixar mais uma vez bem claro o quanto ele é um racista de um tipo muito comum por aí que não tem a exata consciência do que ele é e para a introdução de outra figura do Governo Donald Trump cuja existência é mais estranha do que a ficção. Baseando-se fortemente, como de praxe, em frase de duplo sentido em inglês que se torna intraduzível para o português e em um certo grau de conhecimento do que vem acontecendo especificamente nos EUA dada a boa escolha da produção em tirar por completo o véu crítico, Corrida do Peru é mais uma pérola que Trey Parker traz para o deleite de seus espectadores.
Sem patrocinadores para sua corrida anual de Thanksgiving, a prefeita de South Park recorre ao patrocínio da Arábia Saudita em uma excelente alfinetada no dinheiro que o país árabe vem injetando na contratação de comediantes americanos para fazer shows milionários por lá, alfinetada essa que, como não poderia deixar de ser, transforma-se em uma saraivada de balas sendo cuspidas contra o país pela forma como censura as informações, trata jornalistas, mantém as mulheres em posição de inferioridade e assim por diante em uma diatribe vinda do próprio Cartman a certa altura para convencer Tolkien Black a voltar atrás em sua decisão de não mais participar da corrida justamente pela Arábia Saudita ser o que é. Afinal, o jovem consideravelmente fora do peso (que ele chamaria de “balofo”, “baleia” e outros nomes nessa linha, lógico) tenta usar ciência para ganhar a corrida, mas não qualquer ciência e sim a race science (e aqui vem o duplo significado, já que a expressão é tanto “ciência racial” como “ciência de corrida”), a mesma que eugenistas usaram e ainda usam para “explicar” a superioridade dos brancos sobre outras raças, especialmente a negra. E, na cabeça de Cartman, como afrodescendentes são bons em corrida, ele precisa de um para obter a vitória e levar o gordo (ahá!) prêmio de cinco mil dólares.
E, bem no estilo de Parker, a “ciência” mostra-se certeira, pois, como muito esforço de Cartman, que, depois de falhar em sua hilária argumentação sobre a Arábia Saudita que chega a afirmar que lá é praticamente um “paraíso lésbico”, ele se vê obrigado a sair correndo com o XBox de Tolkien, forçando a ir atrás e fazendo com que o garoto que só queria ficar em paz em casa com seus jogos inadvertidamente acabe ganhando mesmo a corrida, “provando” tudo aquilo que Cartman estava dizendo. Afinal, como discutir com a “ciência”, não é mesmo? Jesse Owens, Carl Lewis, Florence Griffith Joyner e Usain Bolt que o digam!
Na outra linha narrativa, vemos a chegada de Pete Hegseth, o Secretario de Defesa dos EUA, a South Park para libertar Peter Thiel da cadeia custe o que custar, o que significa passar por cima da polícia local que, porém, não está nem aí para a suposta autoridade de um sujeito de 45 anos que só pensa em “criar conteúdo” para suas redes sociais pessoais, algo que é extraído da inacreditavelmente surreal realidade nua e crua. E, claro, isso leva à mobilização das Forças Armadas, com Hegseth “confundindo” a Corrida do Peru com uma manifestação da Antifa e usando de toda sua capacidade estratégia e experiência como celebridade da televisão para lidar com a situação, inclusive com a nefasta tentativa de Kristi Noem de “roubar” sua exposição aos cliques e likes que são dele e só dele. Sem papas na língua, Hegseth ganha até mesmo uma “delicada” versão de Danger Zone só para ele que o chama de fucking douche (traduzido por aqui como “babaca do caralho”) com a canção tendo sido escolhida não aleatoriamente, mas sim em razão da reclamação de Kenny Loggins sobre seu uso em um vídeo de I.A. partilhado por Trump em outubro deste ano. Como se isso não basta, há uma cereja no bolo que é ver Hegseth ao lado de Thiel na cadeia enquanto os policiais vão festejar o Thanksgiving.
Corrida do Peru é mais um episódio comicamente raivoso de South Park em sua encarnação diretamente anti-Trump que vem contando uma história única de 10 episódios, isso se não for além. Agora é aguardar o último capítulo da saga – pelo menos do ano – e ver como é que Trey Parker pretende continuar essa linha narrativa no ano que vem, já que ainda há muito governo surreal de Donald Trump para ele desancar violentamente.
South Park – 28X04: Corrida do Peru (South Park – 28X04: Turkey Trot – EUA, 26 de novembro de 2025)
Direção: Trey Parker
Roteiro: Trey Parker
Elenco (vozes originais): Trey Parker, Matt Stone, April Stewart
Duração: 22 min.
