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Crítica | Splice – A Nova Espécie

por Davi Lima
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No campo da ciência, o arquétipo de neutralidade dos cientistas e do foco deles no objeto de experiência é muito forte. A partir disso, o diretor Vincenzo Natali cria seu terror científico invertendo a premissa do experimento criado como centro narrativo, questionando a pretensa neutralidade cientifizada com um jogo freudista de sexualidade, até alcançar a punição sobre a sociedade pós-moderna.  Como na Bíblia está escrito que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, o diretor, para enfatizar esse mesmo princípio, mostra o experimento biológico do início de Splice – A Nova Espécie no reflexo dos seus criadores.

Em vez de mostrar na primeira cena pós-créditos iniciais um ser vivo de laboratório, aparece a visão de primeira pessoa desse ser vivo do casal de cientistas que o criaram. A importância desse enfoque coloca, na verdade, o primeiro sinal de que os protagonistas Clive (Adrien Brody) e Elsa (Sarah Polley) é que são os que serão testados por suas próprias criações. Isso também pode ser evidenciado quando, em determinado momento, há um movimento artificial no plano geral que mostra o laboratório, pois mostra pessoas observando por trás de um vidro os protagonistas se inteirando com a sua criação, como se o diretor tivesse colocando o espectador num grande experimento em forma de filme.

Dessa maneira, se Clive e Elsa serão colocados à prova, é preciso conhecê-los em seus anseios. Em boa parte do longa existe uma discussão entre o casal sobre ter filhos, sobre mudar de casa, e alguns traumas de cada um vão aparecendo. Simultaneamente em temática, o dilema da ciência, de passar por cima de leis naturais em prol de grandes sucessos para a saúde da humanidade, é colocado em debate explícito; mas de jeito subtextual, o que também se discute é a existente pretensão neutra como objetivo humanitário, que inexiste na realidade de cientistas tão envolvidos com suas criações a ponto de questionar as nuances mercadológicas dos projetos científicos financiados. Ou seja, até mesmo na guerra dentro da ciência, entre os “bons” cientistas iluminados numa mesa de reunião e uma “má” empresária sentada na penumbra, mesmo nesse maniqueísmo, não passa de um prelúdio para se entender tal embate baseado em objetivos próprios, mesmo que um mais geral para a saúde e outro mais específico para o mercado. Não há neutralidade na ciência.

Isso é determinante para que muitas ações do casal protagonista sejam condizentes com o que o diretor estabelece como papel da ciência em constante reflexão pessoal em exercício. Não é a toa que o principal projeto do filme envolva a criação de duas “lesmas”, macho e fêmea, criadas por uma biogenética composta de fatores genéticos de vários animais. A primeira percepção sobre o romance de Clive e Elsa não são por um beijo ou um abraço entre eles, e sim pelo olhar deles para a conexão amorosa dos dois animais transgênicos, para que fique claro, desde o início, também a influência da criação deles para determinar narrativamente o curso da história do filme sobre os protagonistas. Se Elsa não queria ter filhos de maneira natural e Clive questionava isso, como bons nerds em uma empresa chamada N.E.R.D, os cientistas acham uma forma de terceirizar o sexo para que uma experiência deles, escondida dos aspectos capitalistas da empresa, em um bolsão embrionário como um útero sintético, seja o começo da paternidade e maternidade de uma maneira natural.

Evidente que não é plano deles tratarem o objeto de estudo híbrido de animais como um filho, mas o diretor cuida de que isso seja a mensagem da forma como os cientistas agem, pois tanto permanece no discurso da não neutralidade da ciência como vai engatando um novo discurso: de que os maiores anseios são transitados inconscientemente para a criação biológica. Assim, o ser híbrido que agora também tem DNA humano se torna Dren, uma garotinha com rabo e uma cabeça maior que o normal, em que a sexualidade feminina vai surgindo ao passo que sua “mãe” Elsa se dispõe a cuidar maternalmente dela, deixando de trabalhar para ensinar a ler, por exemplo. Enquanto isso, Clive vai ao trabalho, sentindo a ausência de sua parceira e escutando barulhos de Dren em sua mente. E é desse jeito que Vincenzo Natali constrói seu laboratório de psicanálise para o público. A mente de uma mãe obcecada em ser uma mãe por um trauma e um pai que tem medo da paternidade e ciúme da mãe.

Embora esse panorama transpareça um mero drama, o diretor cuida muito bem de tornar o contexto e o ambiente laboratorial estranhamente em sinônimo de casa, para que haja a dramatização efetiva com as inserções peculiares. Essa estranheza e as mudanças de Dren vão criando um suspense em uma trama freudista. Vincenzo articula planos fechados para entrar na mente de Clive e insegurança bem disparate da felicidade ingênua de Elsa. Até numa cena de sexo o diretor aproveita para mover sua peça Dren no tabuleiro  sexual, e que ele na cena seguinte determina o flashfoward (dica do futuro da trama) quando há uma inesperada mudança de sexo nas “lesmas”. A trama concebe alguma ideia de punição com a rivalidade do sexo masculino que existe na natureza, sua resolução para quando se passa dos limites naturais é a volta forçada ao que a natureza estabeleceu. Sem o cuidado de Clive e Elsa com as “lesmas” elas já não tinham amor entre o feminino e o masculino, tinham um desprezo de meros objetos científicos capitalizados, sobrando apenas a rivalidade natural do mercado para transformar sexualmente os animais. Isso restabelece o terror à história, na estranheza sexual.

Tudo isso vai refletindo no drama familiar com Dren. Em um estudo psicanalista do diretor, no inconsciente da paternidade há uma paixão pela filha, enquanto na maternidade é um reflexo da maternidade recebida. Quando Dren se torna num tamanho adulto e é levada para a casa que Elsa foi criada, há uma escolha fundamental de hibridizar a computação gráfica com o corpo da atriz e modelo francesa Delphine Chanéac, pois o filme chega a um ponto máximo de estranheza e sexualidade que alcança o terror de maneira peculiar. A interação familiar e doentia evidencia a psicanálise apenas sugestiva, para que se entenda novamente os limites da natureza. Elsa e Clive são testados e punidos não apenas por irem além demais na pessoalidade com um experimento científico, como chegam a ser um exemplo pós-moderno de um casal que desconsidera qualquer moral quanto à naturalidade de ter filhos. Dren se mostra o resultado dos anseios mais profundos do casal, forçando-os a enfrentarem seus anseios e conflitos de forma aterrorizadamente sexual e social.

Por fim, Vincenzo Natali usa seus artifícios de gênero de terror e suspense para articular uma obra punitiva tanto emocionalmente quanto socialmente. De maneira desoladora, o maior desastre que Splice – A Nova Espécie poderia alcançar de maneira inesperada é uma maternidade sem paternidade. Um senso de independência feminina que Elsa almejava, mas não que sua prole oficial se tornasse na verdade um objeto científico.

Splice – A Nova Espécie (Splice, EUA/Canadá/França – 2009)
Direção: Vincenzo Natali
Roteiro: Vincenzo Natali, Antoinette Terry Bryant, Doug Taylor
Elenco: Adrien Brody, Sarah Polley, Delphine Chanéac, Brandon McGibbon,  Simona Maicanescu, David Hewlett, Abigail Chu
Duração: 104 minutos

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