Home FilmesCríticas Crítica | Star Trek: Sem Fronteiras (Com Spoilers)

Crítica | Star Trek: Sem Fronteiras (Com Spoilers)

por Guilherme Coral
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Yorktown e Através da Nebulosa

Entramos, então, no momento que a trama passa a se movimentar mais rapidamente. Vislumbramos Yorktown, possivelmente uma das estações espaciais com o melhor design da história da ficção científica, que nos remete imediatamente à cidadela do jogo Mass Effect. Yorktown representa tudo o que a Federação preza: a interação diplomática entre diferentes espécies e a beleza de sua construção perfeitamente reflete a paz desse universo, enquanto que a gigantesca esfera que a envolve passa a impressão de fragilidade (como o próprio McCoy ressalta). É evidente, desde já, que ela será atacada em algum ponto do filme, mas não podemos deixar de nos pegarmos em admiração em relação ao local e o que mais podemos pedir de uma franquia sobre exploração espacial? Mais que vilões, complicações, velocidade de dobra, precisamos ver localidades que nos fazem desejar fazer parte desse universo, que trazem um deslumbramento e, consequentemente, trazem uma verdadeira imersão, especialmente considerando que Star Trek se esforça para fazer tudo soar realista, trazendo explicações com bases científicas, não simplesmente jogando informações que dependem de nossa suspensão de descrença.

A vontade de Jim em se tornar um vice-almirante e sair do comando da Enterprise é, então, revelado. Em paralelo, a morte do embaixador Spock (Leonard Nimoy, outro que deixa saudades) é revelada. Naturalmente, o acontecimento foi colocado no texto em virtude do falecimento do ator em 2015, mas o roteiro espertamente faz uso desse triste acontecimento a fim de garantir ainda mais a independência da Kelvin Timeline em relação à clássica. Em paralelo, Pegg e Jung retomam o dilema de Spock no primeiro filme: permanecer na Federação ou ajudar seu povo na formação de New Vulcan? Acima disso tudo (percebam a profundidade do roteiro), essa questão dialoga com as dúvidas de Kirk e ambas são utilizadas para solidificar ainda mais a amizade do capitão e do primeiro oficial e como um é indispensável para o outro. O tratamento dado ao texto é bastante humano, visto que insere momentos de desconfortável silêncio entre os dois e sabiamente divide os dois personagens por um considerável trecho do longa-metragem.

Em seguida, vemos a chegada da nave de Kalara (Lydia Wilson) a Yorktown, que nos leva para o desenvolvimento da trama e o início da missão principal. Prontamente a Enterprise deixa a estação enquanto Justin Lin começa a mostrar a que veio. O diretor passa a utilizar ângulos inéditos, mostrando a espaçonave em close na altura do canhão de fóton, com a câmera estática enquanto tudo ao redor se movimenta – provando que não irá apenas repetir o que seu predecessor realizou, trazendo uma linguagem própria e que perfeitamente se encaixa com a atmosfera da franquia. Um bom exemplo disso é o salto de dobra sendo mostrado de fora, mais um ponto inédito dentro dos filmes da franquia.

Nesse ponto, o roteiro faz uma escolha peculiar. A forma como a nebulosa não-mapeada fora apresentada nos leva a crer que ela seria muito extensa, mas não é isso o que vemos. Os diálogos, porém, nos disseram que ela é apenas densa, impedindo a comunicação ou leitura do espaço além dela através dos sensores. Sua importância na narrativa, portanto se torna evidente: ocultar Krall da Federação e, é claro, isolar a Enterprise de qualquer contato aliado, criando uma tensão maior no espectador, visto que, se qualquer coisa der errado, a possibilidade de um resgate é nula.

Dito isso, é evidente que algo, de fato, sairia do controle dos personagens centrais. Rapidamente, a nave de Krall, ou melhor, a legião de naves do vilão, aparece pronta para destruir totalmente a famosa nave de Kirk. E aqui temos, sem dúvidas, a melhor sequência da obra. A forma como as naves inimigas se comportam, como um grande enxame coordenado, cria uma nítida sensação de desesperança, já que, não importa o que seja feito, elas não parecem diminuir em número. Nosso desconforto apenas aumenta ao passo que todas as estratégias de Jim não surtem qualquer efeito. Pedaço por pedaço a Enterprise é destruída, mas a desistência da tripulação nunca vem, independente de quantos camisas vermelhas acabam sendo explodidos ou jogados no espaço.

A forma como o ataque procede ainda se diferencia de tudo o que já vimos quando as espaçonaves adversárias passam a funcionar como torpedos, não só “costurando” pela Enterprise, como se inserindo nela e depositando as criaturas inimigas dentro da nave da Federação. O foco, então, oscila entre o interior e o exterior, com uma montagem que sabe dosar o tempo em tela dos dois, fazendo com que tenhamos total consciência do estado que os personagens centrais se encontram.  Em paralelo, uma dúvida é criada acerca da personagem Kalara – um simples olhar e indagação bem inseridos de Kirk são o suficiente para nos perguntarmos se ela ocultou informações propositalmente, sua aparência bastante similar à de Krall (sem falar no nome), são outros indícios e o texto não transforma seus personagens em estúpidos ao estender nossas suspeitas para o protagonista, estabelecendo mais um ponto de coesão com o que vem posteriormente.

Toda a sequência é finalizada com chave de ouro com a ideia de separar o disco da Enterprise do restante mais uma novidade que mostra a força de vontade não somente do capitão, como de toda a equipe em não desistir. A nave entra na atmosfera de Altamid e o roteiro tem o cuidado de fazer Kirk abandonar sua nave somente no último instante, não só por ele ser capitão, como para justificar o fato dele não ser capturado pelas forças inimigas, não deixando tudo para as mãos invisíveis da sorte. Aqui abro um adendo para Scotty (Simon Pegg), que utiliza um torpedo fóton para fugir, citando obviamente Além da Escuridão – uma brincadeira do roteiro, mas que mostra que não se esqueceu completamente do filme anterior, apesar de Carol Marcus (Alice Eve) não dar as caras aqui – o que pode ser desculpado, já que estamos quase três anos dentro da missão de cinco anos e tudo pode ter acontecido nesse período.

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A Fragmentação da Enterprise

A melhor cena do filme nos leva, então, a um novo e interessante momento de Sem Fronteiras, com a divisão dos tripulantes da Enterprise em curiosos grupos que muito bem constroem a relação entre cada um deles, algo que não havia sido feito até então no reboot. Magro e Spock proporcionam uma ótima interação, pautada no humor característico de McCoy, sempre irritado e desgostoso em relação à sua situação atual. Mais importante, porém, é o desenvolvimento da intenção do Vulcano em deixar a Frota Estelar, o que nos leva à frase do doutor “eu não sei o que ele faria sem você”, referindo-se, naturalmente, a Kirk. É essa simples interação que já insere em Spock a dúvida, que o faria, repetidas vezes ao longo do filme, observar com um maior zelo sua amizade com Jim – percebam como muito do que é dito pelo capitão, quando reunido com Spock, é acompanhado por um silêncio do Vulcano, evidenciando que, somente no desfecho, ele chega à sua resolução acerca do que fazer.

Em paralelo, Montgomery Scotty encontra com Jaylah (Sofia Boutella), uma ótima adição ao quadro de personagens da franquia e que, surpreendentemente, é trabalhada com a devida atenção, sem soar como se houvesse muito ou pouco foco nela. A forma como o roteiro funciona, mais uma vez nos surpreende pela sua coesão – ela fala inglês, pois aprendeu em sua “casa”, que não passa de uma antiga nave da Federação e já chama os servos de Krall de abelhas, o que abre terreno para o que veríamos no clímax. A interação entre os dois aqui evidencia como o roteiro sabe dosar entre cada grupo, oferecendo exatamente o que precisamos de cada um, dispensando possíveis cenas expletivas e deixando no produto final apenas o que há de importante para a construção narrativa.

Uhura (Zoe Saldana) e o sr. Sulu (John Cho), por sua vez, contam com uma função bastante específica: nos trazer um olhar sobre o vilão e seu objetivo, atuando como nossos olhos na base inimiga a fim de construir a figura de Krall, que cada vez mais ganha mais profundidade e se prova como o melhor antagonista da Kelvin Timeline e não só pela atuação sempre fantástica de Idris Elba (man-crush de Ritter), como pela forma como suas motivações e sua loucura são desenvolvidos. A dica de que ele é um antigo capitão da Federação já é colocada desde cedo na projeção, de forma sutil, mas que pode ser captada, de maneira que a reviravolta ao final não perde sua força e se torna orgânica dentro da narrativa, por mais que muitos de nós suspeitássemos disso antes da revelação em si. É interessante notar, também, como o plano do vilão não peca por exageros (tirando a quantidade gigantesca de naves em sua frota, mas essa é justificada), não é um plano mirabolante, apenas lançar uma arma biológica dentro de Yorktown.

Algo digno de nota acerca de Krall é a forma como nossa percepção sobre ele, aos poucos, vai se modificando. Primeiro, ele é estabelecido como um monstro e sua aparência muito bem reflete isso, de forma que jamais imaginaríamos que se trata de um humano alterado. À medida que vamos aprendendo mais sobre ele, o texto espertamente provoca metamorfoses na figura, ao mesmo tempo que explica como ele se manteve vivo por todo esse tempo. Ele é desconstruído e construído novamente e de um simples alienígena aterrorizante ele passa a ser um triste retrato do que aconteceria a Kirk se ele perdesse seu caminho, um alerta para o protagonista, que acaba justificando sua motivação renovada ao final do longa-metragem.

Cumprida a função narrativa de cada dupla, a equipe passa a reagrupar-se novamente, culminando em um interessante ataque à base de Krall, que resgata o espírito rebelde de Jim – lembremos que ele tinha uma moto no primeiro filme, o que já explica como ele consegue se virar aqui. Além disso, as ilusões de Jaylah são muito bem resgatadas nesse momento e apareceram antes simplesmente para inserir elas no plano de forma coesa (não cansarei de repetir essa palavra ao longo do texto). Mas do resgate aos remanescentes da tripulação, o que, de fato, merece mais nossa atenção é o seu planejamento. Percebam como cada um do grupo de Kirk tem um insight a oferecer, revelando o cuidado de Pegg e Jung em dar a devida relevância a cada personagem – nenhum deles está ali como mero figurante e todos desempenham papéis ativos dentro da narrativa, de forma, ouso dizer, jamais antes vista na série. A prova disso é a breve conversa entre Montgomery Scotty e Jaylah – percebemos que um laço de amizade foi criado entre os dois, de forma que o discurso do engenheiro não soa forçado e, embora curto, justifica a mudança de opinião da personagem.

A montagem demonstra novamente sua qualidade no salvamento em si, sabendo oscilar entre os diferentes focos. Mesmo Jaylah tem o clímax de sua própria história pessoal aqui inserido – seu combate com Manas (Joe Taslim) está aqui presente em virtude disso, provando de uma vez por todas como o texto se preocupa com cada um dos personagens, sem exceção. Mesmo Uhura, muitas vezes deixada de lado nos longas anteriores, ganha o devido destaque e de forma simples, curta, mas efetiva, sua relação com Spock é abordada – é algo pontual, mas com força, que se apoia, naturalmente, na grande capacidade de atuação dos dois e na química presente entre eles.

Esse ato, então, chega ao seu fim com a partida da U.S.S. Franklin de Altamid, que por si só já é uma interessante sequência em virtude do literal jump start da nave. Com a indagação de Kirk a Sulu acerca de sua capacidade de voar aquilo, que é recebida com um bem-humorado are you kidding me, sir?, somos imediatamente levados de volta ao primeiro filme, quando  Sulu falha em engatar o motor de dobra, ainda sob comando de Pike (Bruce Greenwood) – como não ter um sorriso no rosto ao perceber a evolução de cada personagem? Todos eles se demonstram profundamente alterados desde a primeira vez que os encontramos, provando como essa franquia, de fato, só vai para a frente.

 

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