- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série e, aqui, de todo nosso material sobre Star Trek.
Em What Is Starfleet?, sétimo episódio da terceira temporada de Strange New Worlds, a série arrisca uma forma híbrida entre ficção e documentário, colocando o espelho diante da própria instituição que dá nome ao título. A escolha narrativa, filmar a tripulação da Enterprise sob o olhar inquisitivo de Beto Ortegas, irmão de Erica, sugere desde o começo um episódio sobre desconfiança, ressentimento e crítica em torno da Federação e seus membros. A pergunta que guia o título não é apenas institucional ou imperialista, mas pessoal: afinal, o que significa viver sob o peso de uma bandeira quando ela atravessa também relações familiares?
A moralmente complexa missão central adiciona a tensão necessária. A Enterprise deve transportar o Jikaru, uma criatura enigmática, para uma zona de guerra onde os Lutani pretendem utilizá-la como arma. A própria ordem já soa contraditória em relação aos valores da Federação, e o episódio se sustenta nesse atrito: até onde a Frota pode ir em nome da diplomacia? O documentário de Beto, no entanto, não é isento. Ele não busca apenas a verdade, mas uma verdade conveniente: provar que a instituição é falha, fria, destrutiva (e tem quem diga que documentário é imparcial rs). Sua agressividade com a tripulação reflete não apenas ideologia, mas ressentimento, como Uhura percebe no bonito momento entre os personagens ao final do episódio. Apesar de Beto ser o fio condutor do formato, o mesmo ganha pouco espaço, mas acho interessante como seu papel aqui enfatiza ainda mais o arco conturbado de Erica, sempre “estranha” e agitada em suas entrevistas.
Quando o Jikaru escapa e começa a resistir a toda tentativa de recaptura, o episódio troca o tom de entrevista pelo suspense típico de Star Trek, mas mantém o estilo de direção. Spock, em mais uma prova da sua disposição ao sacrifício, tenta comunicar-se com a criatura e acaba em coma, enquanto a nave descobre a verdade: os Lutani a haviam manipulado, transformando-a em uma arma contra sua própria vontade. Esse ponto é fundamental, pois redefine a questão inicial: não é apenas “o que é a Federação?”, mas “como agir diante do sofrimento alheio quando as ordens dizem outra coisa?”. A cena em que Uhura conecta-se telepaticamente com o Jikaru é a melhor do episódio; dolorosa, mas honesta. O pedido de eutanásia da criatura rompe qualquer ilusão de final vitorioso e traz mais um desfecho agridoce para uma temporada cheio deles. Não há triunfo em jogá-la no coração de uma estrela, apenas compaixão e a tentativa de respeitar sua autonomia.
O arco se completa com a resolução dupla: a Federação decide quarentenar o mundo natal do Jikaru, protegendo seus descendentes, enquanto Beto revisita seu material bruto e muda a perspectiva do documentário, dando uma capa otimista para um capítulo questionador. Se antes Beto buscava desmontar a imagem da Frota, agora ele reconhece a humanidade, a compaixão e até a falibilidade de seus membros como prova do que realmente a torna necessária (todas as entrevistas com o elenco principal servem para isso). Esse giro final soa um pouco rápido demais, mas é funcional dentro da narrativa. O episódio, porém, deixa contradições. Ao mesmo tempo em que expõe a crueldade de usar o Jikaru como arma, fecha com um tom quase celebratório na montagem final de Beto, aproximando-se mais de propaganda institucional do que de reflexão crítica.
Há de se questionar a premissa por trás do documentário, em especial na forma agressiva que Beto toma partido ao longo da produção, mas serve a um intuito narrativo e a uma tentativa de trazer algo diferente à franquia. Acho que a trama do Jikaru e dos Lutani é mais interessante do que o doc. em si, então por vezes penso que o formato até atrapalha o que poderia ser um capítulo melhor se não precisasse desse encaixe, mas aprecio a ideia da equipe criativa e o que estão propondo aqui. No fim, o episódio não entrega uma resposta definitiva à pergunta do título. O que ele oferece é uma sensação de que a Frota Estelar é feita de paradoxos: de ordens impopulares, de falhas humanas, mas também de empatia radical diante do inaceitável. É justamente esse paradoxo que mantém Star Trek vivo há décadas.
Star Trek: Strange New Worlds – 3X07: What Is Starfleet? (EUA, 21 de agosto de 2025)
Desenvolvimento: Akiva Goldsman, Jenny Lumet, Alex Kurtzman (baseado em personagens criados por Gene Roddenberry)
Direção: Sharon Lewis
Roteiro: Kathryn Lyn, Alan B. McElroy
Elenco: Anson Mount, Ethan Peck, Jess Bush, Christina Chong, Celia Rose Gooding, Melissa Navia, Babs Olusanmokun, Rebecca Romijn, Martin Quinn, Carol Kane
Duração: 55 min.
