Um dos poucos romances de Bernard Cornwell que não faz parte de sagas com diversos volumes, Stonehenge é, também, sua ficção histórica que mais para o passado vai, precisamente para o ano 2.000 a.C. em que o autor esforça-se para enredar o relativamente pouco que se sabe sobre o monumento megalítico nomeado como tal a partir do século XII d.C. para contar sua versão de como ele foi construído. Como ele mesmo salienta no posfácio, ele decidiu que, diferente do que a arqueologia determina pelo menos modernamente (realmente não sei o que arqueologia dizia quando o romance foi escrito, lá pelo final dos anos 90), sua história se passaria ao longo de uma vida, de forma que as famosas “pedras suspensas” da planície de Salisbury pudessem ser integralmente construídas pela mesma pessoa.
Portanto, diferente de diversas outras obras de sua autoria, Stonehenge não conta com personagens reais ou mesmo vilarejos reais, com o desenvolvimento quase que completamente do zero de todas as circunstâncias que levam à construção do templo, ainda que, claro, ele use como base o que se sabia sobre os povos da Idade do Bronze no que hoje é a Inglaterra, como hábitos de sepultamento, ferramentas, armas, transporte pelo mar e por rios, divindades cultuadas, ritos religiosos e assim por diante. Essa é, assim, uma ficção histórica em que à palavra ficção deve ser dada muito mais relevância do que à palavra histórica, o que é, claro, perfeitamente razoável mesmo para aqueles que esperam de Cornwell sua costumeira aproximação aos fatos históricos que cerca boa parte de sua extensa bibliografia.
A premissa da obra lembra de muito longe Rei Lear, em que um reino é dividido entre três herdeiros, deflagrando a tragédia do rei do título. Em Stonehenge, somos apresentados ao vilarejo de Ratharryn no dia em que um estranho carregado de ouro chega por ali e é morto por Lengar, primogênito do chefe da tribo, para horror de Saban, o filho mais novo que secretamente ajuda no que é possível Camaban, o filho do meio que nasceu com os pés tortos e, por isso, foi expulso pelo pai, vivendo como um pária e morando no templo local. A cobiça torna-se, portanto, o gatilho narrativo da história, com Lengar disputando o poder com o pai, Saban contentando-se com a paz que o pai vinha mantendo e Camaban, vingativo, enveredando pelo caminho da feitiçaria. Mas ambição é um dos temas da narrativa, já que ela vem de mãos dadas com a religiosidade, mas, claro, não a religiosidade pura e sincera, e sim aquela que é utilizada pelo Homem como instrumento para avançar suas pretensões pessoais.
E, para mim, é na forma como essa manipulação é feita que o texto de Cornwell brilha, pois ele consegue resumir com argúcia e estocadas críticas a conversão da “vontade divina” na boa e velha vontade humana, algo que se repete constantemente até os dias de hoje, em que igrejas não são mais do que estratégias lucrativas de manipulação das massas. Afinal, da mesma forma que a racionalidade é defenestrada quando se defende a imutabilidade interpretativa de textos supostamente sagrados, o que falar de uma época em que sonhos, fenômenos naturais, o medo e outros aspectos corriqueiros são arqueados ao bel prazer por sacerdotes inteligentes com objetivos escusos, objetivos esses que não raramente se alinham com o de líderes militares? É dessa forma que, na mente de Cornwell, a fagulha para o Stonehenge passa existir, com Camaban sendo o porta-voz de divindades que “falam” aquilo que Lengar quer ouvir, com Saban, no meio desse conflito, acabando responsável pela construção de um templo nas imediações de seu vilarejo.
Como costuma acontecer quando há a mistura entre religião e estado, o que se segue são atos de violência, sejam eles guerras pela subjugação de outros povos, sacrifícios para apaziguar deuses sempre famintos e o bom e velho desejo de vingança que corrói o Homem, com o romance lidando com viagens a vilarejos distantes e comércio entre povos diferentes, além da construção de mitologias religiosas “concorrentes” que ilustram, em um microcosmo, o que é perceptível em escala global basicamente desde sempre. Cornwell, em muitas situações, repete ciclos em Stonehenge, o que cria uma inafastável sensação de repetição e de recomeço, algo que acaba tornando sua obra um pouco mais lenta do que ela talvez precisasse ser, mesmo que, por vezes, o autor, ironicamente, não consiga transmitir ao leitor a sensação de passagem temporal para além dos artifícios básicos, como é o crescimento de crianças, por exemplo.
Enquanto Saban é o fiel da balança em termos narrativos e aquele cujo ponto de vista é constantemente usado por Cornwell, o personagem em si é consideravelmente menos interessante e nuançado do que outros que gravitam ao seu redor, especialmente Camaban e sua evolução de “pária aleijado” para “feiticeiro temido” quase que como um proto-Merlin, ainda que o autor seja econômico talvez até demais na presença do personagem em seu épico. As personagens femininas, Derrewyn, da tribo rival de Cathallo que se casa com Saban como forma de manter a paz, e Aurenna, a jovem “Noiva do Sol” que será oferecida em sacrifício por sua tribo, ganham contornos místicos muito interessantes que ajudam na composição e variedade desse canto de mundo há mais de 4 mil anos criado pela mente afiada de Cornwell. Lengar é o prototípico vilão, pelo que sua presença é usada muito mais como o outro lado da moeda em relação a Saban do que alguém que ganhe o devido desenvolvimento. Fica evidente que o autor refestela-se no “meio” entre os dois irmãos rivais, tendo o que um dia seria batizado de Stonehenge como a literal pedra angular de sua ficção.
Stonehenge é mais uma obra sólida de Bernard Cornwell, um mestre da ficção histórica mesmo quando precisa depender muita mais da ficção do que da História. Ele entrega um material digno, ambicioso, repleto de reviravoltas cativantes que, porém, peca em seu protagonista um tanto quanto sem graça e em uma sucessão de eventos que se repetem sem realmente trazer novidades. Mesmo assim, é fascinante e convincente o exercício imaginativo do autor sobre como foi erigido o monumento megalítico até hoje envolto em mistérios e que fascina a Humanidade.
Stonehenge (Idem – Reino Unido, 1999)
Autoria: Bernard Cornwell
Editora original: Harper Collins
Data original de publicação: 04 de outubro de 1999
Editora no Brasil: Editora Record
Data de publicação no Brasil: 31 de outubro de 2008
Tradução: Ivanir Calado
Páginas: 504
