- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas das demais temporadas.
Há algo de quase inevitável em notar que Stranger Things chegou à quinta temporada exatamente como o condado de Hawkins chega a 1987: machucado, exausto, inchado, tentando funcionar apesar de estar rachado por todos os lados. A abertura desse novo ano confirma que os Irmãos Duffer sempre quiseram fazer uma ópera adolescente de horror, um espetáculo de trauma juvenil travestido de aventura oitentista. Aqui, pela primeira vez, parece que eles abraçam isso sem pudores. E o resultado é um começo simultaneamente potente e problemático: emocionalmente mais denso que o da temporada anterior, mas estruturalmente ainda mais saturado do que antes.
Os quatro primeiros capítulos operam num registro que mistura apocalipse lento com intimidade quebrada, e é curioso como esse equilíbrio, mesmo quando falho, funciona dentro da lógica da série. Desde a primeira cena com Will no Mundo Invertido de 1983, infectado, isolado e encarando seu pesadelo original, fica claro que esse é um retorno ao trauma fundador (repetitivo dentro da série, claro, mas orgânico). Os Duffer sempre trataram Will como bússola emocional e moral da série, mesmo quando o texto o negligenciava; agora, enfim, é Will quem volta a ser o coração da história. Sua relação telepática com Vecna, seus lapsos, visões e projeções dão a esse início um tom de fatalismo, quase um destino trágico que, felizmente, está próximo do fim. A temporada abre “de verdade” quando entendemos que Will está, literal e metaforicamente, conectado ao mal de Hawkins e não há mais fuga possível.
No entanto, o retorno ao horror mais íntimo vem embalado em um problema crônico dos Duffer: a insistência em múltiplos núcleos que competem entre si. Assim como no quarto ano, há momentos em que a série parece estourar nas mãos dos próprios criadores. Hawkins sob quarentena militar, Eleven treinando escondida com Hopper, Dustin encarando seu luto com uma ferocidade comovente, o grupo da rádio operando como guerrilha informacional, Max perdida dentro do pesadelo psíquico de Vecna, Nancy e Mike investigando um imaginário infantil que nunca foi tão aterrorizante… são todos blocos dramaticamente fortes, mas que às vezes se atropelam e/ou que não ganham o devido aprofundamento.
Ainda assim, o primeiro episódio, The Crawl, tem uma força bruta que remete aos melhores momentos da série. É o capítulo mais desesperado da temporada até aqui, e talvez o que melhor entende o impacto residual do quarto ano: as cicatrizes não fecharam, a cidade está ocupada, e a “verdade” oficial é um simulacro conveniente para o governo. O ataque do Demogorgon à caravana militar, bastante brutal, sujo e encenado com um senso de caos físico raro na série, funciona como um lembrete de que Stranger Things, quando quer, sabe dirigir monstros com peso, fricção e textura (valendo elogiar a superprodução dos efeitos especiais e da direção de arte). É uma sequência tão visceral quanto o resgate de Hopper na Rússia deveria ter sido no ano anterior. E a imagem final da criatura rompendo para o quarto de Holly é o tipo de horror doméstico que a série sempre dominou.
O segundo episódio, The Vanishing of Holly Wheeler, leva essa energia para um tom mais investigativo, mais voltado à mitologia. E aqui, curiosamente, os Duffer acertam ao abraçar o terror infantil como motor narrativo. A ideia de que Holly tinha um “amigo imaginário” chamado Henry, e que esse amigo era Vecna, é genuinamente perturbadora (talvez seja coisa da minha cabeça, mas noto um tom subliminar do medo de pedófilos no mote de sequestro de crianças). É uma espécie de distorção da infância, um modo de reescrever o medo primordial dentro da memória. O capítulo funciona porque coloca os adultos em colapso, Mike e Nancy em modo detetive, e Eleven em uma busca desesperada por Holly. A cidade cercada, os pais em estado crítico, a criança arrastada para o Mundo Invertido… tudo aqui é dimensão emocional, não espetáculo. E é esse foco que salva o episódio de ser apenas mais um movimento de xadrez mitológico.
No entanto, o episódio começa a revelar uma tendência da temporada: a dificuldade cada vez maior em segurar a densidade de tramas simultâneas. O núcleo Hopper–Eleven, por exemplo, funciona quando emocional, mas oscila quando vira thriller militar. Os Duffer continuam apaixonados por subtramas de soldados e instalações secretas, mas não acho que a ação funciona tão bem aqui em todo esse bloco, incluindo a participação meio genérica e sem graça até aqui de Linda Hamilton como a Dra. Kay.
O terceiro episódio, The Turnbow Trap, é a parte mais “Stranger Things clássico”: um plano absurdo, improvisado, criminoso e obviamente destinado ao caos. Usar Derek como isca, montar armadilhas enquanto Will lê a mente de Vecna, drogar a família com a ajuda de Erica… esse é o tipo de aventura juvenil irresponsável que fez a série funcionar lá atrás, e é revigorante vê-la ressurgir. O problema é que, aqui, ela surge em um contexto narrativo muito mais pesado, o que a torna um alívio tonal, mas também evidencia como a série está lutando para equilibrar humor e horror.
Ainda assim, The Turnbow Trap é o episódio em que o elenco brilha. Steve, Robin, Nancy, Jonathan e Dustin, pela primeira vez desde a terceira temporada, parecem parte da mesma engrenagem emocional. Vejo uma consistência muito melhor na narrativa quando os personagens estão menos dispersos e podemos ver mais dinâmicas entre eles. Por fim, a revelação de Max no “Camazotz”, um limbo de memória psíquica, é talvez a melhor surpresa da temporada até agora: totalmente coerente com o arco dela no quarto ano, totalmente fiel ao que a série sempre quis dizer sobre luto e uma escolha simbólico interessante (espero que os Duffer trabalhem bem esse bloco).
O quarto episódio, Sorcerer, é o mais ambicioso, mas talvez o mais problemático. A jogada dos Duffer aqui é clara: transformar Hawkins em guerra aberta, reintroduzir Kali (não acho uma boa ideia, porque a personagem é ruim…), expandir os poderes de Eleven e Will, e, acima de tudo, posicionar Vecna como antagonista final numa escala quase divina. É um capítulo irregular, principalmente porque a participação de Vecna na temporada até aqui é meio diminuta e sem peso, mas que acerta quando retorna ao elemento humano. Max explicando a Holly que elas estão presas dentro da mente de Henry é triste, delicado, profundamente simbólico: duas crianças perdidas dentro de um trauma que não é delas. Will acessando suas habilidades psíquicas para salvar Mike, Lucas e Robin é a primeira vez, em anos, que o personagem deixa de ser vítima passiva da narrativa. E ver os Demogorgons rompendo do chão, atacando soldados, arrastando crianças… é o tipo de brutalidade que os Duffer sempre ameaçaram mostrar, mas que só agora abraçam totalmente.
Por outro lado, Sorcerer é o capítulo que confirma o maior vício dos criadores: a trama quer ser grande demais. Vários Demogorgons, Vecna, Kali, crianças capturadas, rebelião militar, fuga da base, Will descobrindo seus poderes, Max ainda aprisionada, a cidade sitiada, tudo ao mesmo tempo. É espetacular, sim, mas também é um aviso de que, se a temporada não encontrar logo uma contenção narrativa mínima, pode repetir o colapso estrutural do quarto ano, agora em escala ainda maior. Meu receio principal jaz na distribuição de tempo para o grupo principal, mas veremos como seus arcos se fecharão.
Ainda assim, nos quatro episódios iniciais, a quinta temporada atinge algo necessário na sensação de que Stranger Things finalmente está caminhando para um desfecho que honra o peso emocional dos personagens. A série está mais sombria, mais fragmentada, mais violenta, mas também, aparentemente, mais entregue ao que ela sempre foi: uma história de crianças tentando sobreviver a um mundo que nunca soube protegê-las.
Se o resto da temporada conseguirá equilibrar essa tempestade, é outra história. É fato que a série já passou da data de validade, que se estendeu por muito mais tempo e hiatos do que era necessário e que agora se encontram numa megalomania que talvez não fosse o mais interessante para a trama, mas ainda vejo o saldo bem positivo. Por enquanto, o que temos é um começo brutal, melancólico e emocionalmente carregado, que, apesar dos excessos, é profundamente coerente com o que Stranger Things sempre quis ser: não uma fantasia sobre monstros, mas uma elegia sobre crescer cercado por eles.
Stranger Things – 5ª Temporada (Parte 1) – 5X01 a 04: Missão de Resgate, O Desaparecimento de Holly Wheeler, A Armadilha e Feiticeiro (The Crawl, The Vanishing of Holly Wheeler, The Turnbow Trap and Sorcerer) | EUA, 2025
Showrunners: Matt Duffer, Ross Duffer (Irmãos Duffer)
Direção: Matt Duffer, Ross Duffer, Frank Darabont
Roteiro: Matt Duffer, Ross Duffer, Paul Dichter, Caitlin Schneiderhan
Elenco: Winona Ryder, David Harbour, Finn Wolfhard, Millie Bobby Brown, Gaten Matarazzo, Caleb McLaughlin, Natalia Dyer, Charlie Heaton, Noah Schnapp, Joe Keery, Sadie Sink, Brett Gelman, Priah Ferguson, Linda Hamilton, Cara Buono, Jamie Campbell Bower
Duração: 283 min.
