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Crítica | Stromboli, Terra de Deus

Em filme espirituoso, Rossellini propõe um "novo neorrealismo".

por César Barzine
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No final da década de 1940, o Neorrealismo Italiano era o grande movimento cinematográfico da atualidade, e Ingrid Bergman era a grande musa de Hollywood. Apesar de toda essa relevância, ambas as coisas são bem distintas, afinal, o primeiro trata-se de uma vanguarda europeia, enquanto a segunda é uma estrela da indústria americana. Porém, tal separação não impediu a junção dessas mesmas duas coisas — mesmo com toda polêmica moral em volta deste caso —, fazendo com que Bergman do nada abandonasse Hollywood e seu marido, fosse até a Itália se encontrar com o mestre neorrealista Roberto Rossellini e filmassem lá um novo filme. A introdução da atriz no cinema italiano vai muito além de uma mera curiosidade, ela representa também um ponto de renovação no próprio movimento da qual ela está inserida, fazendo com que, a partir daí, os filmes pertencentes ao Neorrealismo deixassem de ser tão enfáticos na tragédia do pós-guerra e passassem a focar mais no campo subjetivo, levando a uma abordagem mais sensível e versátil.

Fazem parte dessa onda de filmes que juntam o lado coletivo da realidade com o romantismo de aspecto individualista obras como Umberto D, Noites de Cabíria, O Grito e o próprio Stromboli. Mas a verdade é que não há nem certeza se podemos considerar tais filmes como neorrealistas, pois apesar de conservarem todo o ambiente desolador característico do movimento, há uma virada radical no tratamento de personagens, dando toda uma ênfase a eles diante do meio ao qual fazem parte. Em Stromboli, este meio é a ilha em que o título do filme faz referência, um lugar onde tanto suas características físicas e sociais quanto a personalidade dos habitantes que lá vivem constroem um mesmo tipo de universo primitivo e sufocante.

É lá onde a personagem de Ingrid Bergman vai viver após se casar — por conveniência e comodismo, já que estava sem rumo — com um pescador. Este sujeito, um homem pobre, sem instrução e rústico, assim como  os demais moradores da ilha. No entanto, a protagonista Karin, vivida por Bergman, é uma mulher de classe, com um passado completamente diferente daquele mundo, mas que agora terá que encarar a pobreza de uma nova vida. É curioso observar que o maior transtorno para Karin está menos na ilha em si do que em seu povo, fazendo com que a pobreza de lá não seja apenas a ausência de bens, mas também o primitivismo no “lado humano” que compõe aquela comunidade: pessoas antipáticas, um moralismo reinante, a falta de pertencimento e uma completa sensação de vazio que assombra Karin.

O espectador acompanha, assim como a protagonista, este mundo isolado dominado por rochas, pequenas casas, poucos recursos, uma ventania incessante e até um vulcão que é a grande marca da ilha para seus habitantes. Aliás, a edição de som é bastante feliz por reproduzir constantemente esse som de ventania que, em especial, é fundamental para a criação dessa atmosfera asfixiante transmitida ao público e sentida a cada segundo por Karin. O tom que domina o longa é de algo seco, áspero e rudimentar. Algo que é frequentemente expressado por Bergman ao deixar claro que ela é “uma pessoa diferente” e que não suporta aquele lugar. Há uma conduta não só de desprezo, mas também de soberba e presunção que apenas eleva a ojeriza com que seus concidadãos a tratam.

Em meio a esses conflitos, o tema do filme pode ser visto como o simples deslocamento de uma mulher em sua conjuntura, a dificuldade de se entregar e ser aceita em um lugarejo. Porém, podemos encarar Stromboli também como um obra sobre conflitos espirituais — a busca por algo inacessível, a dificuldade de se adaptar, a rejeição a esse estrangeirismo, os atritos e o vazio em volta de uma vida indesejada. Pode não parecer, mas neste filme de Rossellini cada uma dessas questões estão centradas num discurso ligado à espiritualidade — ou até mesmo à teologia. Pautas acerca do ter, do desejo e da infelicidade são costumeiras no cristianismo — assim como em muitas outras religiões —, e aqui, devido às aparições de um padre e a algumas falas de Karin, tudo isso ganha um ressignificado, que pode ser lido em diálogo com premissas religiosas como fé, luxuria, devoção, pecado, ação divina e redenção.

A demonstração da entrega de Karin à luxúria é percebida, por exemplo, nessa mesma relação dela com o padre local. A autoridade religiosa é também a pessoa com que Karin mais passa o tempo e possui apoio, sendo ele uma espécie de refúgio para ela. E talvez seja justamente por isso que ela tenha tentado seduzi-lo, como se sua carência afetiva fosse tamanha que a necessidade de algum tipo de afeto criasse uma vontade de expandir essa ligação com ele. Tal junção do litúrgico com o pecaminoso e o carnal criam uma das melhores cenas do filme, que mostra Karin incorporando uma fascinante postura sensual de colocar os nervos à flor da pele para depois desafiar as crenças do padre verbalmente ao expor seu ceticismo e desprezo quanto a fé cristã.

Se neste momento ela faz uso de seu corpo de modo meticuloso e provocativo, na cena que se passa na casa de uma costureira ela acaba despertando um incômodo involuntário por conta de sua presença. Graças ao fato do marido desta costureira estar próximo a Karin e os dois se interagirem, essa mesma esposa acaba se sentindo enciumada com os dois. Uma postura semelhante vem de diversos outros moradores da ilha que, ao verem Karin com outro homem à beira do mar, passam encarar tal aproximação com olhares fixos e puritanos, como se aquela mulher fosse a representação perfeita do pecado, da pessoa indesejada por sua perversão e estranheza. A reação dos moradores é nada menos que o mais puro moralismo, um olhar arcaico típico de províncias isoladas no tempo e espaço.

Existem muitas outras cenas que cativam a atenção em Stromboli, quase sempre carregando algum simbolismo a respeito da ligação entre a protagonista e o seu ambiente. Há de se destacar o momento em que Karin tenta se comunicar com uma criança que permanece muda e estática; quando seu marido coloca uma fuinha para matar um coelho; a passagem em que Karin está numa caverna com o marido da costureira citada no último parágrafo etc. Porém, o clímax do longa se encontra em seu desfecho, em que toda a penúria da personagem de Bergman se concretiza em sua tentativa de fuga da ilha e um certo “castigo divino” por decorrência disso. Esse castigo se move através da natureza, que sempre desempenhou um papel ativo nos trabalhos de Rossellini, levando a uma percepção metafísica dela própria. É só observarmos as ruínas em Alemanha, Ano Zero, as florestas em Francisco, Arauto de Deus e as cavernas em Viagem à Itália para presenciarmos essa abordagem. Em Stromboli, mais do que nunca, vemos a potencialização da physis, que assume uma forma divina e tirânica. 

Após toda a imodéstia, soberba, luxúria, profanidade e depravação — mesmo que essas tendências possam ser relativizadas e humanizadas —, Karin agora passa a pagar por seus “pecados”, pela danação de seu corpo e sua alma. A falta de ar nas latitudes em que se encontra ao tentar sair da ilha a deixa sem fôlego e corroída. Ela pede clemência a Deus e o filme explicita de vez seu lado religioso. Encaramos Karin, então, não como uma pecadora, mas como uma criatura humana que, em certo contexto, tornou-se uma figura fora dos eixos, uma rebelde (parecida com Lilith) que não se encaixava nas convenções. A dor desta estrangeira de aspecto pagão é retratada de maneira triunfante, contrastando o sofrimento dela com a ação de uma força onipotente. O resultado sugere a transformação dessa mera pecadora em um tipo de Maria Madalena que busca por piedade — da qual a saída para o sofrimento extremo seria apenas o retorno à infelicidade em seu estado de contemplação.

Stromboli (Itália, EUA – 1950)
Direção: Roberto Rossellini
Roteiro: Sergio Amidei, Gian Paolo Callegari, Renzo Cesana, Félix Morlión
Elenco: Ingrid Bergman, Mario Vitale, Renzo Cesana, Mario Sponzo, Gaetano Famularo, Angelo Molino, Roberto Onorati
Duração: 107 minutos.

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