De todos os personagens criados pela prolífica dupla Stan Lee e Jack Kirby, o Surfista Prateado é o mais fascinante e aquele que mais atrai histórias de cunho existencial e filosófico. Desde sua primeira aparição na sensacional Trilogia de Galactus, passando por maravilhas como A Resposta e Parábola, a figura do solitário singrador do espaço exilado na Terra depois de trair seu criador Galactus é de uma humanidade sem par.
E foi por isso que, quando soube que Donny Cates seria o roteirista de uma série solo do personagem, que acabou sendo a primeira do Surfista sem Stan Lee vivo, fiquei com receio. Mas minhas dúvidas não repousavam em qualquer reticência que eu tivesse ou tenha em relação ao autor, pois, muito ao contrário, considero seu trabalho para a Marvel Comics um dos grandes achados da editora. Acontece que a principal marca de Cates é seu exagero, sua tendência à completas repaginações de mitologias de personagens, algo que eu tinha na cabeça que jamais combinaria com Norrin Radd.
No entanto, para minha felicidade, Surfista Prateado: Escuridão, minissérie em cinco edições que parte do arremesso do personagem pela Ordem Negra para dentro de um buraco negro em Guardiões da Galáxia (2019) #1, do próprio Cates, é puro Surfista Prateado clássico. Sim, a pegada enlouquecida do autor está presente, mas a reverência ao personagem e aos seus criadores também está lá em cada página dessa viagem lisérgica para os confins do espaço há bilhões de anos.
Sim, porque Cates adora “bilhões de anos”. Ele fez isso para criar a história pregressa dos simbiontes em Rex, o primeiro arco da publicação mensal atual de Venom e repetiu a dose na primeira minissérie solo do Motoqueiro Fantasma Cósmico, sua mais do que tresloucada criação. Portanto, aqui, como resultado do buraco negro, o Surfista acaba em um planeta bilhões de anos atrás somente para dar de cara com ninguém menos do que Knull, o Deus dos Simbiontes que Cates criara no retcon de Venom. Claro que a pancadaria cósmica come solta, com o Surfista sendo “infectado” pelo preto do título original em inglês e vagarosamente tendo sua pele prateada corrompida.
No entanto, a minissérie está longe de ser só pancadaria. Afinal, eu mencionei que ela é “puro Surfista Prateado”, não é mesmo? É que Cates tem o cuidado e a delicadeza de abordar a própria essência do personagem como ex-arauto de Galactus, responsável indireto por bilhões, senão trilhões de mortes até rebelar-se para salvar a Terra. O roteiro, aliás, começa assim, com o personagem relembrando seu passado na espiral do buraco negro e revelando que um de seus nomes é exatamente Morte. Da forma como Cates aborda o assunto, parece até que ele está fazendo apenas uma homenagem a Lee e Kirby sem maiores consequências para a história que conta, mas, na medida em que a narrativa progride, o leitor percebe que a expiação da culpa que sempre corroeu o Surfista é o coração da aventura e é isso que a guia, em uma pegada filosófica e dramática belíssima e que, por incrível que pareça, genuinamente emociona.
Nesse passado remoto, não só vemos o Surfista lidar com seus demônios, com Knull sendo a representação física deles, como também há sua interação com um jovem Ego em uma releitura belíssima da parábola do leão e do ratinho, além de seu encontro com Galactus, ou melhor, com Galan antes que o processo de nascimento do Devorador de Mundos em sua incubadora termine de acontecer. São nesses momentos que Cates prova que realmente conhece o conturbado personagem e remexe profundamente em sua história, em sua vida, sem realmente alterá-la, mas dando-lhe outra dimensão que poderá surpreender muita gente com uma conclusão que certamente trará um sorriso para os rostos mais sisudos.
E se Cates captura muito bem a “voz” do Surfista, Tradd Moore é genial na forma que aborda sua aparência e esse universo “novo” em que o vemos. Os traços ultra-deformados dele para o Surfista emprestam uma aparência de “metal líquido” ao personagem que reflete visualmente seu sofrimento interno. Aos que preferem seus personagens anatomicamente perfeitos, porém, um aviso: Moore exagera, mas é um exagero bom, sensacional mesmo, e não o tipo de deformação desconjuntada que vemos no trabalho de Rob Liefeld ou em muita coisa de John Romita Jr. Além disso, sua pegada é completamente lisérgica como a história exige, lembrando-me muito – mas de maneira diferente – das maravilhosas “viagens” de Christian Ward em ODY-C com inacreditáveis pitadas do espaço sideral de Jack Kirby em obras como seu Quarto Mundo, Eternos ou sua adaptação de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, dentre outras, além das incríveis doideiras de Steve Ditko em Doutor Estranho. Basta para isso reparar como o céu é “habitado” por planetas, supernovas, nebulosas e todo o tipo de corpo cósmico, além das recriações magníficas de Ego e de Galan/Galactus, com as cores de Dave Stewart fazendo tudo explodir nas páginas dessa joia cósmica.
Comecei Surfista Prateado: Escuridão sem muitas esperanças de ver algo ao mesmo tempo diferente e reverencial ao personagem e acabei a última página de queixo caído e querendo mais pela mesma dupla. Deve ter sido assim que quem leu o Surfista de Kirby e Lee nos anos 60 se sentiu. Que maravilha!
Surfista Prateado: Escuridão (Silver Surfer: Black, EUA – 2019)
Contendo: Silver Surfer: Black #1 a 5
Roteiro: Donny Cates (baseado em história de Donny Cates e Tradd Moore)
Arte: Tradd Moore
Cores: Dave Stewart
Letras: Clayton Cowles
Capas: Tradd Moore
Editoria: Lauren Amaro, Danny Khazem, Darren Shan, C.B. Cebulsky
Editora original: Marvel Comics
Data original de publicação: 12 de junho a 30 de outubro de 2019
Editora no Brasil: Editora Panini
Data de publicação no Brasil: setembro de 2020
Páginas: 108
24 comentários
Essa história aparenta ser ótima!
Espero poder ler, em algum momento.
É excelente!
Abs,
Ritter.
Vou esperar lançarem no Brasil pra eu ler… espero que seja lançado logo aqui.
E aguardo um filme do Surfista Prateado, personagem tem muito potencial. E recentemente vi essa cutscene do Surfista para o jogo Marvel Torneio dos Campeões, e achei muito massa: https://www.youtube.com/watch?v=GC5V67k0TAA
Muito bacana a imagem!
Abs,
Ritter.
A primeira edição, com praticamente tendo apenas os pensamentos e monólogos do surfista, é linda demais.
Tradd moore arrebentou na arte tb
E olha que na medida em que a coisa evolui, vai ficando melhor ainda!
Abs,
Ritter.
Eu adoro os monólogos do Surfista. Por mim, a Marvel faria um filme só com ele vagando no espaço e refletindo. Eu pagaria o dobro do ingresso.
Ia ser muito bom !
Top 3 dos meus personagens Marvel
Eu queria ter comprando as mensais mas andei bem ocupado ultimamente, comprarei o encadernado, todo dono de comic shop que frequento aqui ta falando muito bem
Donny Cates junto do Jonathan Hickman e do Jason Aaron é o que a Marvel tem de melhor hoje em dia, inclusive chuto que nesse final de década a Marvel vive sua melhor fase nos últimos 10 anos, tá com muita coisa boa no momento
Esse encadernado vale muito ser comprado, especialmente se eles lançarem em tamanho grande.
E concordo com você sobre o momento que a Marvel Comics está passando. Grandes obras!
Abs,
Ritter.
E o Al Ewing. Eles são os melhores escritores da Marvel nos últimos anos. E eu concordo com você que a Marvel está vivendo sua melhor fase nos últimos 10 anos.
Sim, Ewing também é muito bom!
Abs,
Ritter.
Bem lembrado, Imortal Hulk tá das melhores tb
Dezembro chegando e vejo leituras de qualidade pela frente.
Isso!
Abs,
Ritter.
Uma das melhores criações das HQs! Norrin Radd me ajudou a ser um homem melhor.
Fico feliz de saber que essa minissérie te surpreendeu, Ritter. Ela já está na minha lista de leituras.
Vou deixar pra você o melhor monólogo que eu já li nas HQs (do Surfista, é claro):
“O universo é um oceano de caos.
Um mar turvo, onde a ordem é uma pesca improvável.
Chamamos essa ordem de vida.
Esse sistema, por um breve momento, afasta a confusão inflexível.
Sustenta a si mesma apesar das insondáveis probabilidades.
Floresce apesar das condições mais sombrias.
Ainda assim, o caos permanece, sempre à espreita.
A entropia penetra.
Lágrimas pelas paredes da vida, tanto de dentro como de fora.
Por quê? Perguntamos.
Por que eu vivo?
Por que tenho que morrer?
Estas são as questões com que lida cada vida que desperta.
O conhecimento inegável que cada um de nós, algum dia, deverá enfrentar o caos…
Quer aceite ou não…
O fim vem para todos.
Eu subi no ombro da morte.
Eu provei o caos.
Eu já vi quebrar a vontade mais forte.
Assisti afogar a crença mais firme.
E mais de uma vez me perguntei:
De que vale a resistência?
De que vale toda essa luta?
Pensamentos tristes que estão sempre comigo.
A lógica mais fria.
A mais negra matemática celestial.
Uma férrea compreensão de que só existe um alívio:
Recordar…
Recordar como era estar entre eles.
Conhecer seus medos. Sua dor. O esforço de sua resistência.
Para sentir o calor da alegria da vida.
Ficar admirado com a sua beleza.
Olhar fixamente para a escuridão…
E escolher a luz.”
Norrin Radd, o Surfista Prateado. https://uploads.disquscdn.com/images/700d280f823091618dee70bc6fb305628c2bef747f58968b9abdf146eb7ee1ce.jpg
Muito bom!!!
Abs,
Ritter.
Lindo monólogo! Concordo plenamente, uma das melhores criações das HQs! É tão legal ver outras pessoas que também gostam do Surfista Prateado. Me identifico bastante com esse personagem. Fiquei surpreso em ver alguém falando bem dessa nova história dele, até agora não li, mas espero ler essas HQs do Silver Surfer Black. Espero que o Surfista tenha mais histórias incríveis, assim como as clássicas do personagem.
https://www.picclickimg.com/d/l400/pict/233183021811_/PRIMO-SILVER-SURFER-vintage-1978-KIRBY-poster.jpg
Surfista Prateado Black resgata esse lado profundamente filosófico do personagem. Não perca!
Abs,
Ritter.
Desculpa só responder agora, cara. Eu não recebi a notificação.
Sim, eu espero que a Marvel continue investindo no personagem.
Quero ler isso já! Tu sabe como gosto desse personagem!
Leia para ontem!
Abs,
Ritter.
Gosto muito do Surfista. Bom saber que alguém tem feito algo bacana com ele. Aquela fase do Jim Starlin me agradou, e confesso que foi a última dele que acompanhei, na boa e antiga Super Aventuras Marvel, da Abril. Lerei. Depois volto aqui para comentar.
Nossa! Superaventuras Marvel!!! Que saudades…
Mas leia sim. Achei essa história incrível!
Abs,
Ritter.