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Crítica | Surfista Prateado – Parábola

por Luiz Santiago
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A humanidade tem provado, desde o advento daquilo que se convencionou chamar de Civilização, que não consegue passar muito tempo sem um conjunto de regras para seguir, sem forças (sobrenaturais ou não) para guiá-las e sem a execução de preceitos rígidos e excludentes em relação àqueles que não compartilham dessa mesma vontade de ser comandado — ou que ousam questionar os dogmas do que normalmente se acredita como “puro e verdadeiro”. É triste constatar que a premissa da verdade absoluta, cujos reflexos podem ser vistos na religião, na ciência ou no ceticismo/niilismo absolutos têm sido a moeda de troca das sociedades modernas em suas versões extremas, um comportamento que Stan Lee e Moebius dissecaram na minissérie em duas partes chamada Surfista Prateado – Parábola (1988 – 1989).

Parábola é uma figura de linguagem extremamente eficiente. Quando se trata de um tema religioso, ela ganha da metáfora na construção de uma realidade de fé ou de deixar evidente um conteúdo moral, legislativo ou doutrinário para qualquer pessoa ou grupo, vide os ensinamentos de alguns profetas do Antigo Testamento bíblico e as muitas parábolas de Jesus — que, aliás, centrou as suas pregações inteiramente nessa forma de comunicação. Na presente história do ex-arauto de Galactus, Stan Lee faz dos acontecimentos do mundo à época em que a escreveu (final dos anos 80) o molde constituinte da crítica aos maus costumes daqueles que são religiosos ou bitolados porque precisam de um aval divino ou (pseudo) científico para poder odiar sem culpa. O autor, que encaixa essa situação dentro e fora da trama, desenvolve uma crônica de valor moral eficiente, levando a cabo duas parábolas ao mesmo tempo, uma interna e outra externa à história do Surfista.

No mundo de Parábola, não existem heróis. Moebius desenha com grandeza e relativa simplicidade este cenário específico. Apesar do caráter futurista, a história poderia se encaixar tranquilamente no mundo dos anos 80 ou nas primeiras décadas do século XXI. Pensemos nos temas visuais e narrativos: a) existe uma grande população; b) a mídia é eficiente e manipuladora; c) um ódio cultivado nas mentes e almas parece esperar o momento certo para vir à tona. Moebius expõe indícios dessa relação comportamental a todo tempo, desenhando pessoas muito sérias, com seus afazeres e ordens para cumprir (sempre a obediência a algo como motor social) ou enraivecidas com alguma coisa. Parece-nos que enquanto não obedece a algo ou alguém, a humanidade de Parábola está odiando a algo ou a alguém.

Galactus e Surfista Prateado: a sábia decisão de Moebius em aliar grandeza e simplicidade.

A religião aqui é o único ponto de apoio sobrenatural da população mundial até a aparição da nave de Galactus. Em segundos, a Terra se vê ditante de uma força cósmica sem igual e passa a adorá-la como a um Deus. Sendo o Surfista Prateado o único herói ainda vivo na Terra — porém aposentado, a ponto de ser chamado de “lenda” por alguém no meio da multidão — apenas ele tem coragem e real vontade de barrar Galactus.

Toda a minissérie segue esse parâmetro de luta filosófica e crítica social entre os vários lados da moeda, mostrando ora o drama humano, ora o embate entre os dois seres cósmicos. Aí entra o reverendo Colton Candell, que se aproveita da divindade autoproclamada de Galactus para ganhar notoriedade para sua religião e poder para si mesmo (qualquer semelhança com as centenas de exemplos atuais não é mera coincidência). Ele não se importa com os fiéis nem com o que fazem àqueles que não acreditam na “Palavra Divina”; tampouco barra as condenações jogadas contra os “infiéis”. A medida certa das coisas para ele é ter pessoas que acreditem e jamais questionem o que ele diz. Num outro extremo, Galactus volta à Terra, não quebrando a promessa feita de jamais destruir o planeta, mas chegando pacificamente e fazendo com que a população o adore e se destrua ao mesmo tempo. Simples e fácil assim. E, ainda em outro ponto, temos o Surfista, uma espécie de “anjo caído”, condenado por aquele de quem foi arauto e, aqui, perseguido e ameaçado por ele.

Moebius aborda de maneira elegante e muito funcional a dualidade entre os dois cosmos e a humanidade. No espaço urbano, seu traço é sujo e mostra alta densidade demográfica na maior parte dos quadros (a massa de ovelhas em pânico, em ódio ou em serviço). Seu uso de traços grandes e pequenos, finos e grossos, se alteram progressivamente, dando uma cadência estética sutil e bem adequada ao texto de Lee. Sua representação inicial do Surfista é de surpresa e até a constituição de pleno poder do herói galáctico é compactada em um físico sem exageros, muito próximo dos corpos poderosos que Moebius geralmente costumava desenhar. Já o Galactus do artista francês começa etéreo e se constitui colossal e austero, contrapondo-se visual e conceitualmente ao seu ex-arauto.

O único erro de Stan Lee é não ter estendido um pouco mais a história. Tudo funciona perfeitamente bem com o texto até a reta final, onde algumas coisas se agrupam em  blocos fáceis de serem resolvidos, dando uma incômoda aparência de história finalizada às pressas. Embora isso não seja um fator absurdamente negativo no todo da trama, é doloroso ver um texto escrito com tanto cuidado tomar um caminho mais fácil para alcançar o seu fim. A despeito disso, a reflexão final permanece e o alerta de Lee à humanidade está lá. Se até Galactus desistiu de saciar sua fome entre os terráqueos, isso diz muita coisa (ruim) a nosso respeito.

O final de Parábola nos dá uma impressão aterradora e ao mesmo tempo esperançosa em relação ao futuro da humanidade. Duas coisas, porém, tornam-se gritantes; a primeira, a constatação de que a necessidade de parte da humanidade para crer em algo e obedecer a um conjunto doutrinário de regras é um comportamento indestrutível. E a segunda, que a solidão do homem é algo que nem a adoração e nem a obediência cega podem preencher.

Silver Surfer – Parable  (EUA, 1988 e 1989)
No Brasil: Surfista Prateado – Parábola (Panini Books, 2013)
Roteiro: Stan Lee
Arte: Moebius
90 páginas

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