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Crítica | Tár

A falsa decadência do artista.

por Gabriel Zupiroli
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Há uma aura estilística muito clara e estabelecida que cerca toda a narrativa de Tár. Desde as primeiras cenas, onde o espectador é jogado diretamente nas especificidades daquele mundo através de diálogos nada convidativos, a direção de Todd Field procura sempre apresentar a personagem através de uma encenação sóbria, asséptica, estéril. Existe um universo muito bem definido que carrega a tonalidade cinzenta de Berlim como uma espécie de reflexo de Lydia Tár. E esse universo se localiza justamente espalhado pelos aspectos “oficiais” de sua vida. Está contido nos locais de conversa com outras figuras importantes da música, nas ruas, nos escritórios e inclusive na casa que divide com a esposa – primeira violinista de sua orquestra – e a filha adotada. Em oposição, outro mundo aparece carregando uma inversão completa em relação a essa assepsia, habitando, por sua vez, os espaços onde Tár parece estar mais confortável, mais entregue, mais honesta. O palco, o estúdio, a outra casa que insiste em manter, todos esses locais surgem em meio à narrativa como uma espécie de refúgio para a personagem. Pois no fim, Tár é um filme sobre essas idas e vindas, sobre as contradições de alguém que carrega uma dualidade muito tensionada entre uma força voraz e uma fragilidade evasiva.

Lydia Tár, interpretada por Cate Blanchett, é uma maestrina cuja carreira se encontra no auge. Em meio aos diferentes tensionamentos que esse status envolve, Tár precisa lidar com a cada vez mais incômoda carga de consequências relacionadas a sua forma rígida e egoísta de lidar com as pessoas ao seu redor. Portadora de “relações transacionais”, como a mesma coloca em dado momento do filme, é nesse escalonamento da crise que se dá a destruição das bases estáveis sobre as quais se apoiava sua vida. Em suma, trata-se de uma obra que se estabelece em meio a diversos contrapontos: as contradições de sua personagem, o debate sobre a relação entre a vida do artista e sua obra, sobre o criar e o conduzir e a maneira como uma personalidade egocêntrica consome todo o ambiente ao seu redor em vias da própria destruição.

E o estabelecimento de Tár se apoia justamente sobre as dualidades visuais supracitadas. Não apenas seu pensamento e suas atitudes carregam uma tensão constante, mas a própria maneira de lidar com as consequências é refletida na encenação de Field em relação aos diferentes espaços que a cercam. E essa tentativa da direção de conter as contradições nos espaços cinzentos e claros evoca esse lugar-comum da agressividade e da fuga. Tár está sempre localizada nesse ambiente oficial que a cerca, assim como a câmera muito limpa capta sempre sua clareza, seu enquadramento contido, como o aprisionamento de sua própria figura nessas instâncias. O que, de certa forma, conduz muito bem esse estudo que Field propõe, especialmente na primeira hora do longa-metragem. Entretanto, à medida que a narrativa vai se construindo, essa assepsia cênica surge cada vez mais como um refúgio vazio. As próprias zonas em que a personagem se refugia soam contraditórias, envoltas em uma clareza quase anuladora, como se perpetuasse seu estado anterior. É por essa condução, por exemplo, que a decadência de Tár se faz de maneira apressada, como se interessasse menos à direção especular esse lugar já presumidamente óbvio e mais encerrar, de uma vez por todas, esses espaços de tensão.

Nesse sentido, Tár é um filme que se insere em um conjunto de estudos de personagem que compartilham quase sempre dessa mesma encenação. A decadência do artista, da personalidade fraturada e narcisista, é retratada através dessa forma burocrática de lidar com as instituições narrativas e cinematográficas. Como se precisasse de tal controle, a tensão na verdade acaba por nunca, de fato, existir e se desfazer em meio ao filme, tornando-se apenas uma evocação espectral, vazia. Os fantasmas de Tár, sua obsessão pelo controle e sua negação da realidade que a cerca se apresentam, mas se sustentam apenas como sugestão. A própria relação com as figuras mais novas, embebidas de uma tensão sexual com caráter apenas de objeto de troca, assume tal higienização que amputa qualquer trabalho verdadeiro com o sentimento – e com as consequências.

E isso se dá de tal forma que a própria queda de Tár nunca é, de fato, apresentada dessa forma. A fuga e a relação com a culpa existem, mas como uma falsa muleta que objetiva apenas sua reconstrução. Nunca se perde de verdade pois não há risco de perda. O controle de Field – que é responsável por criar ótimos momentos quando a personagem se encontra, de fato, sobre a torre de marfim – se torna tão massivo e assumido que de antemão não se espera que os riscos sejam, no fim, reais. Tár perde, sem dúvidas, tudo ao seu redor, mas não perde da forma que a decadência é anunciada ao longo de todo o filme. A sensação que fica, no fim, é de uma esperança – que é a última que morre, segundo a personagem – agridoce, de que falta algo para tornar aquela narrativa valiosa o suficiente.

É nesse contraste entre as dualidades – da personagem e da encenação – que Tár acaba por habitar essas duas potencialidades coexistentes. Na entrega de sua sobriedade, se trata de um filme ótimo, com uma performance cruel de Blanchett que realmente vale a pena. Entretanto, nas fugas, nos desvios, o filme não consegue de fato se desfazer do outro lado. O mundo cinzento de Berlim e da direção de Field contaminam toda a obra, impedindo que a decadência do artista se torne algo concreto, palpável. No final, sobre a ambiguidade se o que foi visto concorda ou discorda com o debate proposto por ela, que também está cercado de contradição. É um filme que bebe de uma articulação visual muito precisa, mas que perde justamente em ficar por aí. É um filme, talvez, sobre a sobriedade das instituições, e não verdadeiramente sobre aquilo que habita o interior de sua personagem.

Tár – EUA, 2022
Direção: Todd Field
Roteiro: Todd Field
Elenco: Cate Blanchett, Nina Hoss, Noémie Merlant, Sophie Kauer, Mila Bogojevic, Allan Corduner, Mark Strong, Julian Glover, Sylvia Flote, Fabian Dirr, Vincent Riotta, Sam Douglas, Lucie Pohl, Vivian Full, Lee Sellars, Ed White
Duração: 158 min.

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