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Crítica | Tartarugas Podem Voar

por Luiz Santiago
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Região do Curdistão, algum lugar da fronteira entre o Irã e o Iraque, dias antes da invasão dos Estados Unidos à terra de Saddam Hussein. Em um acampamento de refugiados — e todas as crianças do filme eram, de fato, refugiadas –, um garoto chamado ‘Satélite’ lidera os assuntos relacionados à tecnologia e o trabalho de seus colegas, que basicamente era desarmar minas terrestres para serem vendidas a mercadores de armas, que finalizavam o comércio desses materiais com a ONU (!). Entre a sociedade local diretamente influenciada por questões políticas e o microcosmo de cada criança do acampamento é que o roteiro de Bahman Ghobadi se ergue em Tartarugas Podem Voar (2004). E daí ele arranca uma experiência mortificadora.

Após o controverso e poderoso Tempo de Cavalos Bêbados (2000) e um exercício de maior apelo popular, mas ainda assim bastante duro, em Exílio no Iraque (2002), o diretor volta a abordar o universo infantil expondo a insanidade da guerra em um pano de fundo claramente político (anti-Saddam) e problematizando a invasão dos Estados Unidos, mostrando maneira fantasiosa como nuances existenciais podem ser identificadas em meio a essas ocasiões de maior grandeza.

Nesta fantasia de caráter onírico que se liga à realidade pela tragédia das crianças mutiladas física e mentalmente, há espaço para um adolescente que controla uma região porque sabe meia dúzia e palavras em inglês, sabe negociar, lidar com a guerra, com os seus sentimentos (e sentimento alheios) e ser forte o bastante para sobreviver a isto sem enlouquecer. É quase como se víssemos a história de outros garotos em diferentes cenários e tempos de guerra, como os de Alemanha, Ano Zero (1948), A Infância de Ivan (1962) e Império do Sol (1987), mas em Tartarugas Podem Voar essas realidades se juntam e formam versões utópicas para o fim da guerra e cenicamente impiedosas para as crianças, uma amarga sátira para metáfora de Abbas Kiarostami em Duas Soluções Para um Problema.

Trabalhando novamente com o compositor Hossein Alizadeh (de Tempo de Cavalos Bêbados), Ghobadi conseguiu transformar o seu “pequeno” mal-estar da civilização curdo-iraniano não só em desespero comunitário, mas em uma série de profundos desalentos individuais, características que a trilha sonora delineia já na cena de abertura do filme. Mesmo que o tema trabalhado não seja simples ou bonito, a música consegue fazer, ao mesmo tempo, o papel dos dois lados da moeda, ora marcando o passo da dor, ora deixando clara aquilo que parece ser a única coisa boa que Ghobadi se autoriza expor em suas obras: a esperança de que toda essa desumanidade irá passar e que, de alguma forma e em algum estágio, tudo vai ficar bem.

Igualmente admirável é o trabalho do fotógrafo Shahriar Assadi, que se destaca melhor ao capturar cenas diurnas e espaços abertos — as panorâmicas do filme são de tirar o fôlego –, conseguindo um resultado penoso, mas muito bonito. Como o campo de refugiados não é um lugar convidativo, coube ao fotógrafo e ao diretor se utilizarem desses espaços em benefício do filme, e foi a partir deste motivo cênico que vimos aparecer as perturbações de Agrin em relação ao “bastardo” e ao seu passado. A direção de Ghobadi não tem pressa em dar a resposta, mas não se deixa dar voltas para eventualmente chegar a este ponto. Ele vai costurando elementos soltos no início do filme, como a cena do velho médico curdo-iraquiano que procura um órfão que faz previsões, e os aloca muito bem no enredo ao final.

Em meio a tudo isso, ainda sobra espaço para o uso da História como motivador ideológico e mais uma profusão de símbolos que contam histórias por si mesmos. Por ser o primeiro filme realizado no Iraque após a queda de Saddam Hussein, Tartarugas Podem Voar tem uma urgência que inquieta o espectador. É como assistir ao documentário A Praça Tahrir (2013), feito no calor das revoltas egípcias contra Hosni Mubarak.

Há algo além da trama que salta da tela e atinge ao espectador de forma até inesperada. Como exemplo, citamos a ausência de respostas claras para o título “Tartarugas Podem Voar“. É evidente que se trata de uma metáfora, vinda da única cena em que a tartaruga de fato aparece, nadando no lago. O símbolo da mãe-terra e a ideia de garantia de estabilidade e proteção que o animal traz servem de contraste para o cenário do acampamento de refugiados, presos em sua condição humana e social, impedidos de voar.

E há ainda os peixes vermelhos, citados em várias cenas do filme. Quando enfim aparecem, o espectador fica confuso, enojado pelo que vê. Mas Ghobadi foi certeiro ao utilizar esse objeto simbólico para representar aquele exato momento do filme. Porque os peixes vermelhos (ou dourados) estão entre os itens essenciais da Haft Sīn, a mesa decorada com os sete elementos simbólicos para a tradição do Noruz, o Ano-Novo persa, celebrado em 20 ou 21 de março (equinócio da primavera). Junte a isto a informação de que a invasão dos Estados Unidos ao Iraque aconteceu na madrugada de 20 de março de 2003, durante os festejos do Noruz, e você imediatamente entende a mudança da cor da água dos peixes que ‘Satélite’ ganha de presente.

Tartarugas Podem Voar é muito mais do que um filme sobre os horrores da guerra, seus enlaces políticos, a mutilação, os traumas e as mortes que traz. É também um filme sobre a capacidade humana de se endurecer e amadurecer para conseguir manter-se vivo. E nesse sentido, o longa é um dos que melhor celebram o valor e a beleza da vida. Mesmo que nenhuma dessas duas coisas sejam vistas durante a projeção.

Tartarugas Podem Voar (Lakposhtha parvaz mikonand) — Irã, França, Iraque, 2004
Direção: Bahman Ghobadi
Roteiro: Bahman Ghobadi
Elenco: Soran Ebrahim, Avaz Latif, Saddam Hossein Feysal, Hiresh Feysal Rahman, Abdol Rahman Karim, Ajil Zibari
Duração: 98 min.

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