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Crítica | Tarzan, o Filho das Selvas, de Edgar Rice Burroughs

por Ritter Fan
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estrelas 4,5

Desempregado, sem dinheiro e tendo que sustentar sua esposa grávida e dois filhos, Edgar Rice Burroughs, então com 35 anos, começou, em 1911, a agenciar a venda de apontadores de lápis (!!!) e, em seu tempo vago, voltou a escrever histórias como as que, poucos anos antes, haviam fracassado de forma retumbante. Sua primeira criação nesse período foi nada menos do que o embrião para Uma Princesa de Marte, romance que abriu as portas do mundo editorial para ele e cuja versão original, em forma episódica para publicação em revistas, ele vendeu por meros 400 dólares (o que não era lá muito pouco para um escritor principiante há mais de 100 anos, vale dizer – um cálculo levando em conta a inflação colocaria esse valor, hoje, na casa dos 10 mil dólares) e cuja primeira publicação deu-se em 1912.

Aclamado comercialmente, mas não criticamente, Burroughs sentiu-se seguro e, no mesmo ano, criou talvez o personagem mais famoso de todos os tempos e aquele que talvez possa ser considerado o protótipo dos super-heróis atuais que surgiriam com essa nomenclatura 20 anos depois: Tarzan. O sucesso de Tarzan, o Filho das Selvas (Tarzan of the Apes) foi imediato e ainda mais arrebatador do que o de seu predecessor, John Carter. Na verdade, o autor manter-se-ia escrevendo as duas franquias por muitos e muitos anos, mesmo depois de várias outras criações próprias, com Tarzan chegando a uma incrível coleção de 24 volumes escritos em 1912 e 1965 (o último foi Tarzan and the Castaways, uma coleção de três contos não conectados entre si do herói). Burroughs teve seu nome tão ligado ao personagem, inúmeras vezes levados ao rádio, televisão e cinema (a primeira vez no cinema foi em 1918, com Elmo Lincoln como o primeiro Tarzan das telonas), que ele adquiriu vastas terras na Califórnia que batizou de Tarzana cuja região ao redor chama-se hoje (na verdade desde 1927) justamente Tarzana, em sua homenagem.

Inegável é a fama e a importância de Tarzan na literatura pop mundial, com o grande Ray Bradbury tendo polemicamente afirmado que Burroughs seria o mais influente escritor na História do Mundo. Exagero? Talvez, mas é impressionante notar como Tarzan está, até hoje, profundamente enraizado no imaginário popular e como o personagem e as situações que ele viveu realmente afetou toda a produção literária pulp e, lógico, os quadrinhos.

E é interessante notar como duas obras criadas no mesmo ano podem ser tão diferentes, apesar de tão iguais. Uma Princesa de Marte traz conceitualmente a história de um “estranho em terra estranha”, mas Burroughs, talvez tateando na escrita e possivelmente nos embrionários conceitos de ficção científica, acabou escrevendo um romance claudicante, com pouco valor literário no sentido estrito da palavra (ou seja, não falo aqui de sua influência, esta sim inegável e importante). Personagens mal desenvolvidos e narrativas paralelas que não saem do lugar acabam atrapalhando a fluência da história, algo que o autor curaria em volumes seguintes. Mas em Tarzan, o Filho das Selvas, Burroughs acerta de primeira, criando uma ficção com o mesmo conceito geral do que a primeira aventura de John Carter, mas acrescentando fortemente o mito da criança-fera, algo que também está enraizado no imaginário popular desde Gilgamesh, quando Enkidu, ser criado de barro e saliva e cuidado por animais, torna-se grande amigo do rei de Uruk, na Mesopotâmia, solidificando-se mais próximo do século XX com Mogli, criação de Rudyard Kipling em O Livro da Selva.

A narrativa de Burroughs é certeira e cuidadosa, relatando desde a complicada e trágica viagem de Lord John Clayton e sua esposa Lady Alice Clayton, que acaba com eles isolados em região inóspita da África onde eles constroem uma moradia fortificada para defenderem-se de símios (de raça inexistente, mas maiores que chimpanzés e menores que gorilas) que vivem na região. Lá, Alice dá à luz a seu filho e, com a criança com um ano de vida, ambos acabam morrendo (Alice naturalmente, depois de um trauma psicológico gerado por um ataque a seu marido e John diretamente por Kerchak, rei dessa tribo símia). Kala, um símia que acabara de perde seu filho graças a um ataque de fúria do mesmo Kerchak, adota o “símio branco” que batiza de Tarzan (que significa “pele branca” em sua língua).

Neste ponto, mas muito suavemente, a narrativa muda de ângulo e ponto-de-vista e passa a focar os símios em si, antes vistos apenas como presenças ameaçadoras ao casal de humanos. Essa mudança narrativa funciona, pois Burroughs elegeu contar sua história a partir de um hesitante ponto-de-vista externo, de terceiro e de segunda mão, algo que torna o narrador infiel, mas ao mesmo tempo aproxima o leitor da história e permite uma grande liberdade narrativa e algumas questões de inconsistência técnica, inclusive com a criação de uma raça fictícia de símios e o uso de animais que de outra maneira não normalmente estariam em uma floresta densa como a descrita (como o elefante Tantor e os leões Numa e Sabor).

É no desenvolvimento de Tarzan, de criança a adulto, com sua interação com a mãe adotiva e a inimizade com Kerchak, que a história de Burroughs brilha. Mesmo que estejamos diante de um exemplo do “humano superior ao animal”, fica claro o respeito do autor por toda a natureza que cerca seu herói. Ele é, para todos os efeitos, mais um símio dentre outros símios, mas suas diferenças o tornam especial tanto positiva quanto negativamente. Ao mesmo tempo que ele tem o amor incondicional de Kala, ele é um pária em sua própria tribo em razão de sua aparência. É particularmente interessante notar como essa linha narrativa, que o leva a descobrir a cabana de seus pais biológicos e a aprender sozinho a ler e falar inglês, têm paralelos com situações de fácil detecção na sociedade moderna. Afinal, em última análise, estamos falando de preconceito. Preconceito símio em um primeiro momento e, depois, quando a “civilização” chega para Tarzan, o preconceito dos homens brancos com ele e o desdém por tudo que vem da natureza. A dita superioridade humana sobre todos os demais seres vivos é colocada em perspectiva por Burroughs, que não deixa nas entrelinhas sua admiração pelas forças da natureza.

Essa chamada civilização que vem quebrar o equilíbrio delicado que existe na selva chega representada pelo naufrágio de uma expedição composta por Cecil Clayton, da mesma família de Tarzan (haja coincidência!) e a americana Jane Porter, a primeira mulher branca que o herói vê na vida (ele já tivera contato com humanos de uma tribo indígena com que cria inimizade). Novamente Burroughs altera a narrativa e passa a lidar com a relação de Tarzan com os humanos, especialmente Jane, por quem se afeiçoa e depois Paul D’Arnot, oficial da marinha francesa que chega quando Jane e os demais são resgatados. Mas esqueçam do famoso “mim Tarzan, tu Jane”, pois o autor, nesse ponto, entrega um Tarzan fluente no inglês (fico pensando na real possibilidade de isso acontecer, mas é ficção, não é mesmo?), focando no choque “civilizatório” subsequente, algo que ele aborda de maneira interessante ainda que talvez muito longamente, detraindo um pouco da narrativa, notadamente com a viagem de Tarzan para Baltimore, nos EUA, atrás de Jane.

Mas o que interessa é que Tarzan, o Filho das Selvas é uma leitura pulp do mais alto gabarito e que faz pensar. Pode ser que hoje, em tempos mais cínicos em um mundo sem mistérios, o leitor atual não se interesse pelas aventuras do personagem, mas fato é que Tarzan é universal e particularmente requintado em suas indagações e na forma como desenvolve seus personagens humanos e não-humanos. Uma leitura prazerosa que deveria ser obrigatória.

Tarzan, o Filho das Selvas (Tarzan of the Apes, EUA – 1912)
Autor: Edgar Rice Burroughs
Publicação original: outubro de 1912 na All-Story Magazine e em junho de 1914 em forma de livro
Editora original: A.C. McClurg
Editoras no Brasil (entre outras): Companhia Editora Nacional, Editora Zahar
Páginas: 336

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